O menino que flutuava I
* Por
Urda Alice Klueger
Era julho de 2014 e um pequeno menino tão
lindinho quanto uma pintura de anjo flutuava como que no espaço, liberado que
estava da força da gravidade. Ao seu redor havia uma mãe. Decerto que ela era
ainda bastante jovem; decerto que o menino tinha traços de anjo porque se
parecia com ela. Imagino como essa mãe estava desassossegada, assim cheia de
ansiedades, mas sem saber direito quando aquele menino que flutuava irromperia
de dentro dela para ocupar os seus braços. No desassossego que a dominava,
decerto que ela já passara a ferro o enxovalzinho recém lavado que fizera para
aquela criança; decerto que não conseguia parar quieta. Ouvi dizer que todas as
mães, um pouco antes de darem à luz, ficam ansiosas e expectantes. Na sua
ansiedade o instinto lhe falava, e lhe dizia que logo teria nos braços um
menino (ou uma menina?) que faria diferença no mundo. Coração de mãe não se
engana, e o instinto lhe dava a certeza sobre o ser especial que abrigava. E
ela também sabia o quanto aquela sua criança seria amada na vida. Ansiosa,
desassossegada, ela esperava. Alguma dor incerta, algum prenúncio de dor devia
lhe dizer que o tempo de ter seu menino nos braços chegara.
E, flutuante, o pequeno
menino com traços de pintura de anjo também esperava. Já no outro dia estaria à
mercê da força da gravidade; já no outro dia estaria sem aquele abrigo onde
agora estava, mas teria arranjado outro: o dos braços da sua mãe. Tudo ainda
era confuso e indistinto para ele: um menino assim pequenino ainda não sabe
decidir, programar, tomar decisões.Um menino ainda tão pequeno só sabe de si
que é tempo de nascer e de aprender a respirar e a sobreviver - ainda é o
instinto que o comanda. Mas, no mundo líquido onde flutua, seus macios cabelos,
que também estão flutuando, já cobrem a semente do cérebro privilegiado que
terá; no seu peito, que é delicado quase como o peito de um passarinho, um
pequenino coração que muito pulsará pela humanidade já bate violentamente. E,
como todas as crianças do universo, no dia anterior ao seu nascimento, o instinto
lhe diz que será muito amado. E ele terá a sorte de ser do grupo privilegiado,
que terá amor, carinho, comida, mãos protetoras e amparo até tomar o rumo do
seu caminho. Muitas e muitas outras crianças que nascerão no dia seguinte não
terão a mesma sorte.
Isto, acima, é o que
era para ser, e foi escrito faz bastante tempo para um menino de verdade que
nasceu de verdade e tornou-se grandioso de verdade, e faz gente muito feliz de
verdade. Vamos ver agora o que aconteceu de verdade em julho de 2014 na Palestina:
O menino que flutuava II
Julho de 2006, e a
loucura tomava conta do mundo, mas mesmo assim aquela mãe carregava dentro de
si o tesouro que era aquele menino com frêmitos de esperança no Futuro dele.
Ela vivia n Palestina, mas a mesma história poderia ter sido igual em diversos
pontos do mundo. Sua terra estava sendo duramente castigada por mísseis
invasores, mas sabe como é, sempre existe a Esperança - até que um dos mísseis
derrubou a parede de sua casa e tirou-lhe, dentre tantas outras coisas, a vida.
Vizinhos e amigos sobreviventes
acudiram-na, socorreram-na, mas ela já tinha morrido. Então era mister salvar o
menino que ainda estava dentro dela, e todos se apressaram a fazê-lo. Alguém
bateu a foto daquele salvamento, mas já era tarde. Estilhaços haviam entrado na
sua barriga que abrigava o menino, e ele também estava morto, com profundo
corte nas costas que nunca se agasalhariam nos braços da mãe que também já não
existia, que nunca se encostaria numa carteira de escola, que nunca seria o Ser
Especial do qual era promessa. Está aí acima a foto, ela diz tudo. O menino que
flutuava agora está enterrado debaixo da terra.
Por quanto tempo vamos ficar indiferentes?
Blumenau, 24 de Julho
de 2006.
* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e
doutoranda em Geografia pela UFPR
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