O gueto de Gaza
* Por
Urda Alice Klueger
(Escrito em 2009, mas
de grande atualidade neste momento, julho de 2014.)
Eu me lembro com intensa
nitidez dos profundos olhos aveludados e escuros daqueles homens, daquelas
moças. Passei a conhecê-los nos Fóruns Sociais Mundiais de Porto Alegre –
costumava chegar quase na hora do começo da passeata de abertura, e quando meus
amigos me perguntavam:
- Vamos todos juntos?
Eu não titubeava:
- A gente se encontra
depois. Vou junto com quem tiver mais necessidade de apoio. Vou ver se encontro
o pessoal do Iraque, ou da Palestina...
Sempre encontrava o da
Palestina. Eram homens de profundos olhos inteligentes e sofridos; eram moças
com olhos iguais, algumas vestidas como certas figuras bíblicas femininas que
pintores do Renascimento pintaram, e sempre com tamanha fé na Justiça! Vinham
em poucas pessoas lá do seu mundo distante e garroteado, poderiam sumir no meio
de multidões de 100.000 pessoas com as suas humildes “hattas”[1], mas eram eles
os mais visíveis, porque as pessoas que se abalavam até os Fóruns Sociais
Mundiais bem sabiam da realidade torturante daqueles irmãos. Na primeira vez
que desfilei com eles decerto pareci-lhes estranha – não falávamos uma palavra
sequer um da língua do outro, mas já lá no final, chegando ao anfiteatro do
Pôr-do-Sol (quanta saudade!), alguém serviu de intérprete e contou para um dos
palestinos que eu perdera um emprego por defender a Palestina. O homem de
profundos olhos de veludo deu uma risada contagiante, e respondeu algo que também
me foi traduzido: ele também perdera o emprego por ser palestino! Nosso
simpático contato sem palavras começou ali.
Em outras ocasiões em
que nos encontramos eles já me recebiam calorosamente com seus olhos que tudo expressavam,
e que tinham uma ternura aveludada que poderia adoçar o mundo.
Depois que os Fóruns
Sociais Mundiais saíram de Porto Alegre e foram para outros países, passamos a
ter uma palavra de contato: quando nos encontrávamos, sempre primeiro na
passeata de abertura, apontávamos uns para os outros e dizíamos: “Porto
Alegre!”, palavra chave que, aliada aos olhos profundos e misteriosos deles,
significava todo um caloroso discurso. E nos abraçávamos como irmãos que somos
(ou eram? Estarão vivos?), e na passeata de Caracas/Venezuela, um dos homens
mais velhos tirou da sua mochila uma belíssima bandeira da Palestina em seda
verde, vermelha branca e preta, e me deu. Sorrimos um para o outro e dissemos a
palavra mágica:
- Porto Alegre! - e eu
guardo com imenso carinho aquela bandeira de seda assim como a recebi, talvez
ainda trazendo entretecido nos seus fios finos esporos ou pólen de plantas ou
de outras formas de vida daquela distante Palestina onde provavelmente não
poderei ir no decorrer da minha vida, pois envelheço, e o gueto que é a Faixa
de Gaza está cada vez mais inacessível, e a mágoa da minha desesperança me faz
pensar muito na solução final[2] dada ao Gueto de Varsóvia...[3]
Vejo as notícias e as
fotos na Internet, e sei de tantas coisas, faz tanto tempo! Sei como os meus
irmãos da Palestina tem que suportar o cheiro nauseabundo do lixo em
decomposição, pois o Estado de Israel não deixa sequer que de lá se retire o
lixo... e sei das crianças palestinas que são feridas por obuses lançados por
tanques enquanto brincam, e que morrem de hemorragia nos portões do seu gueto
porque insensíveis membros do exército israelense dizem que só dali a tantas
horas tal portão poderá ser aberto, para a criança chegar a um hospital... e
sei de detalhes que me deixam com vergonha por ser chamada de humana, pois um
exército a serviço de também ditos humanos sionistas faz coisas que quase não
são críveis, como derrubar um edifício inteirinho para matar um único homem a
quem perseguem, e que sabem que está escondido no poço do elevador... ou esse
mesmo exército lançar um míssel sobre uma inocente festa de casamento, ou sobre
uma formatura de guardas de trânsito...
Mil páginas seriam
poucas para enumerar todos os horrores que sei, que tenho lido, tenho sabido,
tenho aprendido sobre o que o governo de Israel faz com o Gueto de Gaza sob os
olhos de todo o mundo, como se ninguém se importasse. O espaço, aqui, não
permite entrar nas causas históricas dos acontecimentos, mas é bom aprender a
respeito, para se entender que Israel não tem razão, que os horrores que vêm
desde a década de 1940 são dos mais abjetos da humanidade. O que me horroriza ainda
mais, neste momento, são as fotos que não param de chegar de Gaza, de crianças
carregadas nos braços dos pais, sem os pés e parte das pernas, com tendões e
nervos que sobraram retorcidos como se fossem molas de metal, ou das fileiras
de meninos e meninas nos seus trajes de frio, mortinhos, prontos para o
funeral, e das caras sem consolo dos pais que ali estão, ou daquele menininho
morto e ensangüentado, que o pai carrega no colo embrulhado na bandeira,
bandeira igual àquela que tenho, menininho que nunca terá nos olhos aquela
força forte como aço e suave como veludo e que nunca entenderá a palavra “Porto
Alegre” – de novo digo que mil páginas seriam poucas para contar sobre cada
foto, cada fato, cada texto e cada análise que tenho lido – um último fio que
me une à esperança é a existência daquela gente de Israel que se nega ao crime,
daqueles soldados israelenses que preferem a prisão do que ir assassinar seus
irmãos já quase mortos de fome, frio e sede no gueto vizinho – pois Gaza hoje
tem 1.500.000 habitantes trancafiados sem recursos numa área de 350 quilômetros
quadrados, o que é mais ou menos a metade do tamanho desta minha pequena cidade
de Blumenau...
Não há como dizer
“enfim”, para um texto como este. A dor e a mágoa por se saber que tais
injustiças continuam acontecendo diante do mundo é uma coisa que poderia me
matar de angústia, e então tenho que reagir escrevendo, que é o meu jeito de
ser – mas o que escrever, se todos os grandes escritores, todos os grandes pensadores
deste mundo já escreveram tudo o que eu gostaria de escrever, pois não é só a
mim que a indignação arrasa – e por todos os lados as populações estão saindo
às ruas para protestar contra este massacre inumano? Então achei que poderia
escrever sobre os meus palestinos, aqueles que sabem a palavra “Porto Alegre”,
e que tem aqueles olhos profundamente cheios de significado, força e doçura.
Então penso se estarão vivos, se aquelas lindas moças não serão hoje cadáveres
só com meia cabeça, ou se os netinhos daqueles homens não estejam, talvez, com
ferimentos como se fossem couve-flores
de sangue nas suas barriguinhas de meninos mortos, ou se meus próprios
amigos já não terão vidrados e frios os seus olhos que eram cheios de doçura e
de força...
Ah! Palestina, ah!
Palestina, como me dóis cá dentro do meu peito que parece estraçalhado... Ah!
Palestina, ah! Palestina, que me resta fazer além de chorar angustiadamente,
como estou a fazê-lo agora?
[1] Hatta: Lenço palestino, quadriculado de
preto e branco, ou de vermelho e branco, que se tornou um símbolo de
resistência. Era usado por Yasser Arafat.
[2] Solução final:
expressão usada pelo nazismo que significava, a grosso modo, “matar todos”.
[3] Gueto de Varsóvia:
onde 380.000 judeus foram implacavelmente mortos pelos nazistas até a última
pessoa. Procurar se informar melhor a respeito. Hoje é o Estado de Israel que
repete a história, matando sem piedade os palestinos da Faixa de Gaza.
Blumenau, 06 de Janeiro
de 2009.
* Escritora de Blumenau/SC, historiadora e
doutoranda em Geografia pela UFPR
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