A Via Sacra
* Por
Vítor Orlando Gagliardo
- Em nome do Pai, do
Filho e do Espírito Santo.
- Amém!
- Ide em paz e o Senhor
vos acompanhe
- Graças a Deus!
- Pai, vamos dar uma
volta?
- Vamos sim, filho.
Os dias eram sempre
iguais para Alfredo e Marquinhos. Todos os domingos eles iam à missa das dez
horas.
E depois não tinham
mais o que fazer.
Alfredo nasceu no
Maranhão e decidiu tentar uma vida melhor no Rio de Janeiro. Veio escondido da
família em uma caçamba de caminhão aos 14 anos. Uma vez comentou com seu pai,
Seu Sebastião, seu desejo de sair de sua terra natal. Levou uma surra que
jamais se esqueceu em toda sua vida. Alfredo jamais voltou ao Maranhão ou teve
qualquer notícia de seus familiares. Hoje sabia que certamente seus pais já teriam
morrido. Embora não admitisse, sofria calado.
Já na Cidade
Maravilhosa, dormiu em
abrigos. Fazia pequenos bicos em troca de um prato de comida.
Viveu assim até atingir a maioridade.
Finalmente conseguiu
seu primeiro emprego como faxineiro de um prédio no Méier. Ali conseguiu também
um pequeno quarto para dormir. Nos seus dias de folga, gostava de ir à praia de
Copacabana e jogar o futebol da madrugada no Aterro do Flamengo. Alfredo jamais
se atrasou em seu trabalho.
Foi neste emprego que
conheceu Jacira. Ela trabalhava como empregada doméstica no apartamento 403.
Foi uma paixão platônica. Jacira tinha uma história de vida parecida com a
dele. A diferença é que veio da Bahia com a mãe (Dona Regiane), após o pai ter
sido morto pelos militares que o confundiram com o que chamaram de ‘baderneiro
comunista’.
Jacira morava com a mãe
na casa de uma tia (Dona Joana) e a prima (Marcelle) no morro do Borel, na
Tijuca.
O síndico, seu
Abelardo, sabendo do romance dos dois, intimou que Alfredo deixasse Jacira. Era
proibido o relacionamento de funcionários com pessoas que circulassem pelo
prédio.
Alfredo acatou, mas
continuou encontrando Jacira depois do horário. O porteiro-chefe, Ziquinha, que
queria empregar um primo (que ninguém sabia que era primo), Fidélis, contou ao
síndico que Alfredo e Jacira continuavam o romance.
Nesse mesmo dia, Jacira
contou a Alfredo que estava grávida. A felicidade de Alfredo durou um corredor.
- Você está despedido –
disse Seu Abelardo.
- O senhor não pode me
demitir. Sempre trabalhei de forma honesta e correta aqui dentro. Ninguém nunca
reclamou do meu trabalho.
- Você não cumpriu
minhas ordens.
- Não posso ir embora.
Vou ser pai. Eu imploro.
- Está aqui tudo o que
lhe devemos. Passar bem.
Fidélis assumiu o cargo
de faxineiro. Alfredo foi morar com Jacira no Borel. Seu relacionamento com
Dona Joana e Marcelle era péssimo. Brigavam o dia inteiro e a todo momento ele
ouvia que não estava em sua casa. Alfredo se calava por Jacira e Dona Regiane.
E sabia que na pior das hipóteses, ele realmente não estava em casa.
Oito
meses depois
Alfredo ainda não tinha
conseguido seu emprego. Fazia alguns bicos por alguns trocados. Para piorar a
situação, Dona Regiane faleceu. Mas, enfim, tinha um motivo para sorrir.
Segundo previsão dos médicos, seu filho nasceria naquela semana. Ele não via a
hora de colocar Marcos em seus braços. Sentado na sala de espera, Alfredo roia
o resto de unhas que ainda tinha. Já tinham se passado duas horas e nada dos
médicos. Alfredo estava aflito. Alfredo viu o médico no corredor vindo em sua
direção.
- E então, doutor?
- Você é pai de um
menino lindo com muita saúde.
- E a minha Jaciara,
doutor?
- Então Alfredo ...
(longo suspiro)
- O que aconteceu? Diga
logo, doutor!
- Ela teve uma
hemorragia e infelizmente, não conseguiu sobreviver.
Alfredo se ajoelhou e
começou a gritar
- Por que, meu Deus?!
Por que, meu Deus?!
- Meus sentimentos! Sei
que é um momento difícil, mas você não pode se entregar. Lembre-se que agora
você tem um filho.
- O que vou fazer? Não
tenho para onde ir.
- Procure ajuda na
Paróquia São Domingos. Tenho certeza que vão ajudá-lo na medida do possível.
Agora venha conhecer seu filho.
Quando Alfredo pegou
Marcos em seu colo, mais uma vez não conteve as lágrimas.
- Meu Deus! Me ajude! Que
meu filho possa ter uma vida melhor!.
Quinze
anos depois
- Pai, quando vamos ter
nossa própria casa?
- Deus sabe a hora
certa, meu filho.
Durante todos esses
anos, pai e filho moraram na paróquia. Sem conseguir emprego, Alfredo prestava
serviços para a Igreja sem remuneração. De vez em quando, arrumava uns bicos.
Marquinho estava matriculado em uma escola municipal e cursava a sétima série. Após
assistir a missa dominical, os dois resolveram dar uma volta em uma feira
próxima da Igreja.
- Tô com fome!
- Filho, não temos
nenhum dinheiro.
- Minha barriga tá
doendo.
Alfredo ficou arrasado
e sem saber o que de fato fazer.
- Me espere na porta da
Igreja. Em quinze minutos eu volto com uma surpresa.
Antes de Marquinhos
sair, o pai se ajoelhou.
- Aconteça o que
acontecer, saiba que te amo e sempre te amarei – e deu um longo abraço no
filho.
Desorientado, Alfredo
chegou em uma banca que vendia biscoitos.
- Irmão, piedade! Meu
filho está com fome e não tenho nenhum dinheiro no bolso. Você poderia me
ajudar?
- Você acha que eu
tenho cara de Madre Teresa de Calcutá?
- Piedade, irmão!
- Vai trabalhar seu
vagabundo! Saia logo daqui!
Alfredo pegou um
biscoito da barraca e saiu correndo a toda velocidade.
- Pega ladrão! Pega
ladrão! – gritou o comerciante, correndo atrás de Alfredo.
A confusão foi estabelecida
na feira. Alfredo foi parado abruptamente por dois feirantes. Derrubado no
chão, levou diversos chutes e pisões. Uma senhora, Dona Florinda, que estava na
feira, reconheceu-o.
- Parem com isso! Ele
trabalha na Igreja.
- Ele trabalha para o
Diabo – disse o comerciante em meio a um chute.
Marquinhos, que estava
sentado na porta da Igreja, ouviu toda a confusão e ficou curioso em saber o
que estava acontecendo.
- Será que meu pai vai
ficar bravo se eu sair daqui rapidinho? – pensou
Como não esperava demorar,
pensou que voltaria antes de seu pai. Marquinhos foi entrando no meio da
confusão. Ouviu dois rapazes conversando sobre um tal ladrão de biscoitos.
- Merece morrer! –
disse um dos amigos.
Sem entender muito bem,
ele foi chegando bem no centro da confusão. A primeira cena que conseguiu
avistar foi a de um caído no chão envolvido por uma poça de sangue. Viu uma
senhora tentando ajudar o homem caído e um gordo em pé que cuspia no corpo.
- O que a Dona Florinda
faz ali? – pensou.
Marquinho correu em sua
direção para ajudá-la. Quando a senhora percebeu sua chegada tentou detê-lo.
- Não meu filho! Não
venha até aqui.
Marquinhos parou no
susto e se ajoelhou
- Pai ...
- Esse ladrão é seu
pai? – perguntou o comerciante.
Marquinhos não
respondeu.
- Você deveria ter vergonha
de ter um ladrão como pai.
O menino, com os olhos
cheios de lágrimas, fitou o comerciante e chegou mais perto do corpo de
Alfredo.
- Pai ... – e o
abraçou.
Uma ambulância chegou
ao local, mas Alfredo não resistiu e faleceu antes de chegar ao hospital. O
enterro de Alfredo foi pago pelos membros da paróquia.
- Obrigado por tudo
padre.
- Para onde você vai,
Marquinhos?
- Tenho parentes que
moram aqui perto. Vou procurá-los.
- Volte a hora que
precisar.
Marquinhos e Padre
Afonso deram um longo abraço. Alfredo nunca falou muito de seus parentes que
moravam no morro do Borel. No máximo dizia que não eram boas pessoas.
- Posso ajudá-lo?
- Posso entrar tia?
Marcelle tomou um
susto. Poucas vezes tinha visto o menino que agora estava crescido. Marquinhos
contou toda a história ocorrida nos dias anteriores.
- Você pode ficar aqui
o tempo que quiser.
- Vou ficar pouco
tempo.
Marcelle morava
sozinha. Tinha se divorciado e seu filho morava no Rio Grande do Norte. Os dois
foram na missa de sétimo dia de Alfredo.
- Pai, vou vingá-lo e
depois, nos encontraremos – disse em
meio a oração.
Cinco
dias depois
- Vou dar uma volta.
- Não demore. O jantar
está quase pronto.
Marquinhos sonhava
todos os dias com Alfredo. A imagem de seu pai era sempre singela e ele sempre
dizia:
- Resignação, filho!
Deus vai prover.
Mas Marquinhos só
pensava em vingança.
Quando fechava os olhos, lembrava da imagem do comerciante
gordo chamando seu pai de ladrão.
- Preciso de uma arma.
- Quem é você, moleque?
Marquinhos explicou
toda a sua história para Tico, o chefão do morro do Borel.
- Você já deu algum
tiro na vida?
- Nunca.
Identificado com a
história do garoto, Tico resolveu ensiná-lo.
- Está aqui. Faça
direito com suas próprias mãos – disse Tico.
Marquinhos acordou cedo
para ir à missa dominical. Marcelle tinha ido a um bazar perto dali. Deixou uma
carta de agradecimento por tudo. Após a missa, Marquinhos foi para a feira.
Avistou de longe o comerciante. Sentiu um frio na barriga.
- Lembra de mim?
- Você não é o filho do
ladrão de biscoito?
- Meu pai não é ladrão.
- Saia já daqui
moleque. Ou você também vai me roubar?
- Você vai se
arrepender da suas palavras.
O padre terminava suas
orações quando de repente ouviu o som de três tiros. Assustado, foi para a
porta da igreja. Ouviu uma gritaria e dois corpos no chão. Uma pessoa lhe disse
que o menino acertou dois tiros no comerciante e depois tirou a própria vida. O
semblante de Marquinhos era de conforto. Finalmente ia reencontrar o pai.
* Jornalista
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