Quarto de pensão
* Por
Marco Albertim
Um quarto de pensão
vazio é tão lúgubre quanto um homem solitário. Suas paredes podem ser borradas
ou mesmo chamuscadas de fungos. No homem não há borrifos de mofo na alma, mas a
fundura do pensamento oco, quanto mais afunda, mais não acode a apelos de
salvação. Com Salvador Peçanha, os borrifos de fungos nas paredes do quarto,
serviram para dar conta de que o mesmo poderia ocorrer com seu rosto e seus
olhos inertes. Olhou-se no único espelho do quarto, e pouca diferença notou
entre a pele riscada de rugas de seu rosto e a superfície crestada de musgos
sem vida nas paredes.
Ele descera do trem na
estação central. Segurando no ombro a tiracolo com as alças esticadas,
mostrou-se viageiro de curtas distâncias, inda que as alpercatas de couro já
estivessem com as tiras eriçadas e sem o viço do couro recém-curtido. A calça
frouxa, da mesma cor pardacenta das alpercatas, ocultava a real espessura das
pernas e das coxas, ajudando na camuflagem dos pés. Não evitou o rangido do
couro quando, antes de subir o primeiro degrau para o salão de saída da
estação, viu o cartaz com seis rostos e o nome respectivo abaixo de cada foto.
No cabeçalho, o westerniano aviso - PROCURADOS. Seu rosto não constava, mas o
de Marília, com quem se casara por afinidade de ideias e semelhanças de rostos,
mirou-o sem susto, por isso mesmo crispando de assombro o juízo de aparência
mole de Salvador Peçanha. Demorou um longo minuto para distinguir os outros
rostos. Não houve tempo, porque Marília há muito vinha ocupando seu juízo carente da conversa
ligeira dela. O pragmatismo da mulher, curtido nos anos de militância
clandestina, era uma faca de gume afiado e ponta tão fina quanto invisível. O
costume também se estendera ao conluio dos sexos. Inda que o jorro seminal
fosse abundante, o ato tinha pouca duração. Sem queixas à performance de cada
um, despediam-se satisfeitos, certos de que a dialética dos choques rápidos,
logo os reuniria na mesma refrega de cama. Por toda a viagem, Salvador Peçanha
pensara em Marília. Encontrou seu retrato no pórtico de saída do corredor de
desembarque, e ele, por segurança, queimara o retrato da mulher, um três por
quatro miúdo, carregando lembranças, oculto entre outros documentos na carteira
de dinheiro.
O quarto da pensão
tinha duas camas paralelas. Fora avisado pela proprietária de que a cama
vizinha à parede da frente, abaixo de duas janelas da frente da casa, estava
ocupada. O ocupante, como ele, também preenchera a ficha de hóspede dizendo-se
viajante. A mulher mostrara-se gentil, inquirindo-o sobre o que pretendia no
Recife tão ruidoso quanto o pregão de seus camelôs. A pensão, carece dizer, era
num beco de casas conjugadas, na Rua Floriano Peixoto. Salvador Peçanha sorveu
o cheiro do mangue na margem do Rio Capibaribe, sorveu-o sabendo que os muros
da Cada de Detenção também tinham um cheiro próprio, o mesmo instilado dos
poros dos presos nas celas.
- Estou procurando
trabalho - disse ele sem mirar no rosto moreno da mulher perfumada. Por certo
ela nunca se deixara entranhar pelo vapor morrinhento do Capibaribe.
- Tem experiência em
quê?
- Fui vendedor. Gosto
de lidar com o cliente.
- Não parece. - atalhou
ela - Você não está me olhando de frente.
- A senhora não é um
cliente meu. Eu que sou o seu hóspede.
- É uma boa resposta
mas não diz tudo. Conheço um coronel da Polícia Militar muito conhecido por
empresários da Rua da Concórdia. Quer que eu fale com ele para conseguir
emprego para você?
Marília se despedira de
Salvador Peçanha numa noite de hinos silenciosos e solenes. Não cantaram a
Internacional, mas os olhos de cada um, de tão luzentes, chisparam de orgulho,
chisparam com a introjeção do rubor sorvido da bandeira vermelha nunca içada,
entrevista na curva inferior das costas de Marília.
Na casinha de um quarto
apenas, nas margens da linha ferroviária de Bebedouro, em Maceió, decidiram não
usar a cama já cúmplice do sexo sem rebu. Foram para o fundo do quintal, abraçaram-se
sob a espessa ramagem do sapotizeiro. Deitou-a tendo o cuidado de mantê-la de
costas para si. Ela mesma levantou o vestido, desceu a calcinha e logo ouviu o
sussurro do parelho:
- Às favas com as
convenções da burguesia!
O cheiro de mofo nas
paredes da pensão em nada parecia com o estrume perfumoso do quintal. Salvador
Peçanha se instalou na cama vizinha ao segundo quarto, separado do seu por uma
porta sempre fechada. Quando apagou a luz, sentiu o perfume de sabonete vindo do
lado. Olhou pela fina brecha entre um lado e outro da porta, e viu a silhueta
nua da proprietária se livrar da toalha com que cobrira o corpo depois do
banho.
- Não. Não precisa se
preocupar - respondera a ela quanto à proposta de pedido de emprego ao coronel.
- Você parece que não
gosta de militares...
*Jornalista e escritor.
Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife.
Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do
concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em
concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite,
integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”.
Tem três livros de contos e um romance.
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