Heranças
de um crime
* Por Rodrigo
Ramazzini
- Perdeu! Perdeu! Assalto! Assalto!
Coloca todo o dinheiro e as joias neste saco de lixo! Agora! Agora! – ordenou
Roger a uma atendente.
O assalto à joalheira fora planejado durante
um mês pela dupla de amigos, Roger e Marcelo, sendo executado pouco antes do
meio-dia de uma quinta-feira. Era o primeiro crime cometido pelos dois, que não
tinham qualquer passagem policial. Nascidos e criados em uma pequena cidade,
distante cerca de 80 km da Capital, conheciam toda a sua movimentação e os
melhores caminhos de fuga. A habilidade no manejo de armas, que trouxeram
clandestinamente do Paraguai por meio de um amigo, fora adquirida durante o
período em que serviram ao exército brasileiro. A preparação para o crime ainda
contou com a aquisição de tocas ninjas e a confecção de “miguelitos” para
tentar furar os pneus das viaturas policiais em caso de perseguição à moto, que
era de propriedade de Marcelo. Também assistiram filmes que relatavam famosos
crimes e ensaiaram passo a passo a ação, que pretendiam que fosse rápida.
Quando o relógio marcou 11h45min e uma
vaga de estacionamento foi aberta exatamente em frente à joalheria, a dupla,
que cuidava tudo a poucos metros, decidiu que era hora de executar o plano.
Estacionaram a moto e, ainda com os capacetes, pularam para dentro do
estabelecimento comercial, que contava com a presença, no momento, de duas
atendentes e um cliente.
- Tu e tu! Para o chão! Chão! Ali! Ali!
Quieta! Quieto! – comandou Marcelo para a outra atendente e o cliente.
Apesar de a execução estar saindo
perfeitamente como o planejado, a dupla não escondia a tensão e o nervosismo na
fala e no manejo das armas, principalmente, Marcelo, cuja mão direita tremia
sem parar. E foi justamente esta mão direita que fez com que o crime começasse
a dar errado. Enquanto a atendente colocava o dinheiro e as joias em um saco e a
outra atendente e o cliente permaneciam deitados no chão, Roger ordenou que
Marcelo desse uma averiguada na retaguarda da dupla. Ao se virar bruscamente,
ele deixou cair a arma no chão, que estava sem qualquer tipo de travamento. Com
isso, um disparo foi efetuado e atingiu um carro, no outro lado da rua,
chamando a atenção de quem passava.
- Tá louco, cara! Tá louco! O que isso,
velho? Junta essa merda de uma vez! E tu! Mais rápido com esse dinheiro, porra!
– esbravejou Roger.
Marcelo juntou a arma. Minutos de
tensão. A atendente, mesmo em pânico, terminou de colocar o dinheiro no saco.
Quando a dupla saia da joalheira deparou-se com uma viatura da polícia, que
fora acionada depois do disparo.
- Puta que pariu! Puta que pariu! Atira!
Atira! Atira!
Bam!
Bam! Bam! Bang! Bang! Boom! Bum!
A troca de tiros entre policiais e
criminosos durou alguns minutos. Acuados, Marcelo e Roger decidiram retornar
para a joalheira e fazer novamente as atendentes e o cliente de reféns.
- Fudeu, cara! Fudeu! O que a gente faz
agora? – questionou Marcelo.
- Não sei! Não sei! Deixa eu pensar!
Vamos negociar! – respondeu Roger.
- Eu não quero sair daqui morto, cara! –
suplicou Marcelo.
Em poucos minutos, a rua da joalheria estava
isolada e repleta de policiais. O comandante do policiamento da cidade também chegou
ao local em pouco tempo. Tomou conhecimento da situação e teve a iniciativa de
iniciar as negociações para a rendição dos criminosos e a liberação dos reféns.
Ligou para o telefone da joalheria. Roger atendeu.
- Alô! Aqui é o Capitão Abreu. Vamos
negociar?
- Bom dia, grande Capitão Abreu! Como
vai o senhor?
-....
Capitão Abreu ficou por um breve
instante mudo ao telefone. Reconheceu a voz imediatamente. Era inconfundível
para ele. Roger era seu filho mais velho. A relação entre eles nunca fora das
melhores e tinha se agravado há seis meses, depois de uma discussão sobre a
suposta informação de que Roger estaria envolvido com o tráfico de drogas.
Informação plantada dentro do batalhão de polícia por um pretendente ao cargo
do Capitão, com o objetivo de desestabilizá-lo. Desde então, nunca mais haviam
se falado.
- Por que, Roger?
- Agora, realmente, eu sou um criminoso,
Capitão Abreu!
- Isso é vingança contra mim, Roger?
- Pois é, Capitão Abreu! Pois é...
- Já pensaste o que estás fazendo da tua
vida?
- Ainda não! Por isso, só começo a
negociar daqui a uma hora...
Roger encerrou a ligação. O sentimento
de desilusão tomou conta de Capitão Abreu, porém não poderia demonstrá-lo aos
comandados. Foi então que surgiu a dúvida: “contar ou não contar que um dos
assaltantes era seu filho?”. Enquanto pensava no dilema, encontrou uma saída
momentânea para manter sob o seu controle a situação.
- Pessoal! Todos aqui. Ele me disse ao
telefone que só começa a negociar daqui à uma hora e que a negociação deve ser
conduzida exclusivamente por mim. Ok?
A dúvida que atormentava ao Capitão e a
busca para encontrar uma razão para aquele ato extremo de Roger o fez com que
se esquecesse dos detalhes. Assim, em meio ao tempo pedido por Roger para
iniciar as negociações, a imprensa e o reforço de grupo antissequestro da
Capital estavam no local, o que só agravava-lhe o contexto.
Dentro da joalheria, os reféns tiveram
mãos e pés amarrados e serviam de “escudo humano”. Nervoso, Roger suava frio e
balançava o pé direito em busca de uma solução. Já Marcelo estava tomado pelo
desespero, chorando incessantemente e dizendo:
- Eu não quero ser preso, cara! Eu não
quero morrer! Eu não quero morrer! Pelo amor de Deus, tira a gente daqui! Eu
não quero ser preso! Eu não quero ser preso!
O ambiente tenso predominava no local.
Do lado de fora da joalheria, policiais se posicionavam em caso de necessidade
de invasão. Já dentro, Marcelo ficava cada vez mais em pânico. O fato ganhara
notoriedade nacional. Faltavam cinco minutos para que o contato com os
assaltantes fosse restabelecido, conforme combinado com Roger. Assim, Capitão
Abreu resolveu contar a seus superiores que um dos criminosos era seu filho. Foi
então que, enquanto fazia isso, em uma reuniãozinha afastada dos demais
policiais, um ruído seco de um disparo ecoou de dentro da joalheria:
- Bam!
Marcelo não aguentara a pressão e
atirara contra a própria cabeça. Sem saberem a origem do tiro, a reação
policial foi rápida e a invasão ao estabelecimento comercial demorou poucos
segundos. Houve troca de tiros. Um policial ficou ferido no braço. O cliente
tomou um tiro de raspão no ombro. As duas atendentes saíram ilesas. Roger foi
quem mais sofreu, levando uma série de tiros na região abdominal. Ele foi
socorrido desmaiado e levado para o hospital. Entre os policiais, começava a
discussão para saber quem havia dado a ordem de reagir daquela forma.
Dois dias depois. No hospital.
Acompanhado da esposa e outros
familiares, Capitão Abreu aguardava o resultado da avaliação da junta médica
sobre o estado de Roger, que permanecia inconsciente. Em silêncio, caminhava de
um lado para outro na sala de espera. Uma eclosão de sentimentos que variava de
raiva a arrependimento o deixava perturbado. Ainda não havia compreendido toda
a situação. Eis então que surgiu o médico com a notícia.
- Como vocês bem sabem, o Roger passou
por uma série de procedimentos cirúrgicos nos últimos dias. Conseguimos retirar
todas as balas do corpo dele. Entretanto, a maioria dos tiros atingiu os dois
rins, comprometendo as suas funcionalidades. Pelo quadro clínico dele, que é grave, porém
estável, o mais indicado neste momento é um transplante. Vamos ter que procurar
um doador!
O diagnóstico médico deixara todos
estarrecidos. A mobilização em busca do doador iniciava dentro do próprio
hospital e as primeiras ações estavam sendo idealizadas, quando Capitão Abreu surpreendeu
a todos e declarou:
- Eu serei o doador! Doarei um rim para
o Roger!
Todos sabiam o que ele estava passando e
que o ato de Roger fora uma vingança. Entretanto, o ódio não foi capaz de superar
o sentimento de amor paterno e a capacidade de perdão do ser humano. Capitão
Abreu se submeteu a todos os exames necessários para a realização do
procedimento e o resultado apontou que ele era compatível. Um sentimento de
“leveza” apoderou-se de Capitão Abreu, que sentia uma nova era na convivência
com o filho iniciar e que os erros do passado dos dois seriam deixados para
trás.
Transplante.
A parada cardíaca aconteceu logo no
início do procedimento cirúrgico. Durante quase duas horas os médicos tentaram
reanimar Capitão Abreu, que não resistiu e faleceu. Com a sua morte, mesmo
sendo pegos de surpresa e em estado de choque, os familiares acataram a
sugestão médica e autorizaram que um rim fosse doado a Roger e o outro a um
paciente que estava na fila de espera há dois anos. Assim, como os demais
órgãos.
O transplante foi realizado com sucesso
e o corpo de Roger aceitou bem o novo rim. Depois de três meses, ele saiu do
hospital e foi direto para a cadeia.
Cemitério.
Condenado a nove meses de reclusão no
regime fechado após a tentativa de assalto, hoje, é o primeiro dia em que Roger
saiu da prisão para continuar a cumprir a sua pena de mais dois anos no regime
condicional. Deixou o presídio e foi direto ao cemitério, onde estão enterrados
os corpos do amigo Marcelo e do Capitão Abreu.
Lá, ao ver os túmulos tão próximo um do
outro, começou a chorar. Enfim, sentiu que a sua ação motivada pelo desejo de
vingança ao pai o condenara a carregar o sentimento de culpa pelo resto da
vida...
* Jornalista
e contista gaúcho
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