Um poema de Jorge de Lima
* Por
Aleilton Fonseca
Jorge de Lima (1893-1953)
escreveu um poema intitulado "O grande desastre aéreo de ontem",
dedicado ao pintor Cândido Portinari (Cf: LIMA, Jorge de. Poesia completa. Rio
de Janeiro, Nova Fronteira, 1980, 2 v, v 1, p. 237) que ficou praticamente
esquecido pelos estudiosos. Isto talvez se deva ao fato deste poema estar, de
certa forma, fora das características gerais da poesia do poeta alagoano.
Trata-se de um poema em prosa, condensado em apenas um parágrafo, no qual
podemos perceber duas partes justapostas. Eis a primeira:
Vejo sangue no ar, vejo
o piloto que levava uma flor para a noiva, abraçado com a hélice. E o
violinista em que a morte acentuou a palidez, despenhar-se com sua cabeleira
negra e seu estradivárius. Há mãos e pernas de dançarinas arremessadas na
explosão. Corpos irreconhecíveis identificados pelo Grande Reconhecedor.
Jorge de Lima inicia o
poema com o registro de uma constatação, introduzida através do verbo no
presente (vejo), seguindo-se a enumeração dos objetos de sua percepção, cujo
sentido irá constituir-se no conjunto do texto. Na segunda parte, há uma
retomada do impulso poético, com a repetição da frase inicial e nova enumeração
dos objetos e seres percebidos, chegando a uma espécie de chave de ouro nas
duas frases finais:
Vejo sangue no ar, vejo
chuva de sangue caindo nas nuvens batizadas pelo sangue dos poetas mártires.
Vejo a nadadora belíssima, no seu último salto de banhista, mais rápida porque
vem sem vida. Vejo três meninas caindo rápidas, enfunadas, como se dançassem
ainda. E vejo a louca abraçada ao ramalhete de rosas que ela pensou ser o
paraquedas, e a prima-dona com a longa cauda de lantejoulas riscando o céu como
um cometa. E o sino que ia para uma capela do oeste, vir dobrando finados pelos
pobres mortos. Presumo que a moça adormecida na cabine ainda vem dormindo, tão
tranqüila e cega! Ó amigos, o paralítico vem com extrema rapidez, vem como uma
estrela cadente, vem com as pernas do vento. Chove sangue sobre as nuvens de
Deus. E há poetas míopes que pensam que é o arrebol.
"Não faça poesia
com acontecimentos", afirmou Carlos Drummond de Andrade em seu antológico
poema "A procura da poesia". Esta posição, assumida em pleno
exercício de reflexão sobre o fazer poético, lembra o ponto de vista clássico
sobre a poesia lírica, que a considerava o resultado da projeção da
subjetividade sobre o mundo, tradução em palavras da experiência emotiva do
poeta.
Até hoje a divisão de
gênero ainda opõe a subjetividade da lírica à objetividade da prosa. Dessa
forma, o dado objetivo - acontecimento em si - não seria propriamente poético.
Um fato que se pode narrar, mesmo recriado literariamente, pertenceria
propriamente ao campo da prosa como matéria da ficção. Mas, como se sabe, o
próprio Drummond fez muitos poemas de acontecimentos, haja vista a grande
coletânea intitulada Boitempo, suas memórias em verso. Manuel Bandeira também
deixou vários poemas sobre fatos, inclusive o famoso "Poema tirado de uma
notícia de jornal". E há vários outros exemplos que se podem citar.
Ocorre que os poetas
modernos definitivamente incorporaram o dado factual como matéria da poesia,
estabelecendo o estatuto do poético a partir de uma perspectiva centrada na
forma/linguagem. O fato, o "acontecimento", real ou imaginário,
torna-se uma referência externa ao texto, seu elo motivador, seu marco inicial
de senntido. O poema, assim originado, poderá, se bem realizado, adquirir
permanência e estatura literárias, uma vez que, por sua construção enquanto
linguagem poética, torna-se um valor em si mesmo, descolado do fato que o tenha
motivado.
O poema de Jorge de
Lima é um exemplo disso. Aparentemente, em seu título, se anuncia como registro
de um fato, mas desde a primeira frase evolui para um jogo de imagens de grande
beleza plástica, com um efeito poético notável. O título do poema se assemelha
a uma manchete de jornal a abrir mais uma notícia. De saída, isso levaria a
esperar um texto referencial, como se fôssemos ter a crônica de um
acontecimento, uma pequena descrição do fato, ou informações detalhadas sobre o
"grande desastre". O texto se desenvolve rápido num só parágrafo e a
leitura nos mostra que não estamos diante da simples informação e/ou descrição
de um fato. Estamos diante de um jorro de palavras que explode em metáforas
diante de nossos olhos, no espaço da folha, num continuum lírico que comunica a
projeção da subjetividade do eu poético sobre a experiência do fato, vivido ao
nível da imaginação.
Edgar Allan Poe, no
texto "A Filosofia da Composição", descreve os mecanismos por ele
desenvolvidos para conseguir determinados efeitos poéticos em seu célebre poema
The raven (o corvo). Segundo Poe, é muito difícil manter o fluxo lírico em
alta, à medida que o poema avança. Assim, o poeta precisa introduzir imagens de
reforço e reiterar motivos, de modo a avivar e manter a força lírica do poema.
Embora seja um texto curto, o poema de Jorge de Lima parece utilizar-se desse
procedimento formal.
O poema do poeta
alagoano se desenvolve a partir de uma imagem básica, "sangue/cor",
que é reiterada duas vezes, retomando o fôlego lírico: "Vejo sangue no
ar" e "chove sangue". Esta imagem dá a tonalidade pictórica do
poema, fixa o quadro, estabelecendo a idéia de um instantâneo, como uma pintura
moderna, com o motivo no primeiro plano de visão que "choca",
trazendo de permeio os detalhes. Essa motivação se esclarece pela circunstância
em que foi produzido, pelo seu tema e pela intenção de homenagear o pintor
Cândido Portinari. As imagens que seguem, a partir de pretensas informações
acerca dos passageiros, não estão numa ordem secundária no poema, antes
funcionam para intensificar o fluxo lírico de maneira crescente, até a retomada
da imagem básica, que realimenta o processo e fecha em clímax, na última
reiteração.
A idéia do
"instantâneo" lírico é garantida no plano textual através da
reiteração da forma verbal sempre no presente, em que "vejo" (7
vezes) e "vem" (5 vezes) marcam, na seqüência lingüística, o que
poeticamente é um instante, uma explosão lírica: a imagem que o poeta traduz.
Vejamos as imagens
complementares que intensificam o fluxo poético: O poeta "vê"
primeiro o piloto, referência inicial à dicotomia segurança/desastre, que a
circunstância "estar num avião" impõe. Mas não é apenas um registro:
é a imagem da quebra da seqüência dos gestos de vida, representados pela "flor
para a noiva". A perda aí não é apenas de um piloto, mas do homem em si, e
de seus gestos inerentes a sua condição de humanidade. Essa condição está
representada pelo sentimento (o amor) interrompido num irônico/amargo
"abraço à hélice". E se seguem: o violinista e seu estradivários/
mãos e pernas de dançarina / meninas que caem como se dançassem/ a prima-dona
riscando o ceú. Esse feixe de imagens compõem nessa aquarela um tom musical
trágico-lírico, transferindo a imagem potencial dos gestos ordenados da
partitura e da coreografia, para outro plano em que são associadas aos
movimentos da explosão, noutra ordem natural, como partitura-ao-acaso. A imagem
musical aí composta traduz a idéia da vida submetida, num instante, a outro
ritmo não dominado pelo homem (a pane, a explosão), que o surpreende,
configurando uma imagem lírico-coreográfica da vida que explode em morte. Isto
lembra o auge operístico trágico-lírico, pois também no poema os detalhes se
somam num avolumar-se até chegar ao clímax, causando a "explosão" emotiva
no leitor-fruidor do texto.
As imagens da quebra do
ritmo da vida pela explosão/ morte se consolida nas passagens seguintes: o
salto da nadadora, a louca abraçada ao ramalhete de rosas/paraquedas, o
"paralítico que vem com extrema rapidez". A explosão subverte o ritmo
natural da vida e precipita as personagens num ritmo não mais intrínseco a si
mesmas, mas ao próprio movimento em si, enquanto propriedade inerente à
matéria. Essa força projeta-os noutra lógica - surrealista - que ancora este
poema/aquarela.
Observa-se também que
há no poema um apelo à sensibilidade religiosa, com duas referências à
divindade: primeiro através da paranomásia "Grande Reconhecedor",
depois através da denominação direta (Deus), na penúltima frase-verso. De
permeio, a presença do sino que dobra pelos mortos acentua o clima de
religiosidade. Esses recursos conferem ao fato relatado uma aura
lírico-religiosa, como rito de passagem da vida terrena para a presença de
Deus, o Grande Reconhecedor, sugerindo a fé como uma fonte de consolo
existencial face à circunstância da morte. O poema iconiza o clarão explosivo
ao traduzi-lo por "sangue no ar", "chuva de sangue",
"nuvens batizadas pelo sangue dos poetas mártires", pois "Chove
sangue sobre as nuvens de Deus". O sangue, ou seja, a vida - enquanto bem
terreno - esfuma-se no ar, incorporando-se de volta à fonte original do
universo. É esse sentido mais profundo que o poeta quer comunicar ao leitor.
Daí o paralelo com arrebol, imagem fácil e enganosa que ofuscaria os
"poetas míopes", ou seja, aqueles que não conseguiriam
"ver" além da aparência das coisas. Enfim, os recursos utilizados
pelo poeta somam-se para provocar no leitor sensível emoção e melancolia,
entretanto confortadas pelo ritmo suave e pelas cores vivas de seu poema-aquarela
em homenagem ao pintor Cândido Portinari. Sem dúvida, trata-se de um dos mais
belos poemas de Jorge de Lima, um poeta que sempre merece ser lido e apreciado
por todos.
* Aleilton Fonseca é
escritor, Doutor em Letras (USP), professor titular pleno da Universidade
Estadual de Feira de Santana, membro da Academia de Letras da Bahia, da UBE-SP
e do PEN Clube do Brasil.
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