Flávio e Elza
* Por
Dinah Silveira de Queiroz
Cobria-se a Serra de
flores. Correu primeiro um balbucio de primavera. Seria já a florada? Botões,
aqueles pequenos sinais? No meio dos bosques escondidos entre os montes, o
amarelo e o vermelho salpicavam, abriam no verde sorridente espanto. Em lugares
mais resguardados, mais favorecidos, em breve surgia a neve florida cobrindo as
pereiras e transformando, enriquecendo a paisagem. E logo também floriram os
pessegueiros. Junto das favelas, nos parques dos sanatórios, rodeando os
bangalôs, à beira das águas mansas, a florada em rosa e branco apontou
finalmente, luminosa, irreal.
Perto do pequeno lago
em que se debruçavam as pereiras alvas, encantadas, o pintor armou o cavalete.
Tocados de primavera, os galhos roçavam a água que reproduzia a fila das
árvores. Amarrada à margem, a pequena canoa envernizada, vazia, estava juncada
de flores que o vento carregara.
Elza surpreendeu Flávio
pintando com aquele entusiasmo e fervor. Tocou-lhe no ombro.
Espere um pouco.
- Você pediu licença
para pintar aqui?
- Claro, disse Flávio
sem olhá-la. Deixe-me acabar uma coisa.
Elza passeou uns
momentos pelas alamedas, depois voltou, esteve a contemplar Flávio de costas.
Vestia malha acinzentada descobrindo a nuca vermelha. As mangas arregaçadas
deixavam ver o braço queimado de sol, com veias salientes. Elza aproximou-se,
olhou-o de perfil. Sempre aquela maneira nervosa de morder o lábio! Antes lhe
dava ele tanta impressão de força, de saúde. Mas agora apreendera o desmentido
daquele empastamento, daquelas rugazinhas quase invisíveis junto dos olhos,
daquela curva dos ombros cansados precocemente.
- Que é que você
olhando?
- Você.
Levantou-se, desarmou a
tela, guardou a tinta e pincéis, vagarosamente, limpou os dedos. Enxugou o
rosto suado.
- É mesmo maravilhosa a
florada aqui. Você tinha razão.
Elza apanhou um pequeno
galho, fez uma coroa, colocou-a em cima da cabeça.
- Você já viu grinalda
mais linda?
- Linda, disse ele,
olhando-a muito sério. Tão linda que receio que desapareça. Parece que a estou
vendo, coroada de flores, subindo um altar...
Apanhou um galho,
outro, outro mais, fez um imenso ramo, encheu-lhe os braços de flores.
- Não se mova. Assim.
Esteve a contemplá-la.
Depois, subitamente, mudou de humor, encostou-se a um pinheiro com um repentino
enervamento.
- Que é que você tem,
Flávio?
Atirou as flores ao
chão. Chegou-se a ele, muito perto. O rapaz desviou os olhos.
- Nada, disse por entre
dentes. Nada a não ser um cansaço... Cansaço de mim mesmo, que de vez em quando
me vem. É preciso muito esforço para construir uma lenda e viver dentro dela...
Já estou cansado.
- Lenda por que,
Flávio? Se a doença o impediu de seguir a carreira escolhida, também não criou
em você um artista, que com certeza não teria existido, se não tivesse esta
vida isolada?
- Artista...
A sua voz soou amargamente.
- Artista... Viver aqui
sonhando que faço obras-primas. Prodígio de auto-sugestão! E ainda mais...
Riu um pouco fino.
- Construir em você uma
outra criatura, afeiçoar-me a ela sem querer olhar, ver afinal a verdadeira...
Os lábios de Elza tremeram.
Esperara sempre por aquilo, mas apesar disso, fugiu-lhe a calma.
- Por que não quer a
verdadeira? Será assim tão cheia de defeitos, tão incompleta para ser querida?
Sentiu-se atingida
dolorosamente no íntimo. Com voz aguda prosseguiu:
- Tudo porque sarei.
Desde que o Dr. Celso apregoou a minha cura, que vocês me detestam. Sim, não
negue. Para quê?
Lágrimas queimaram-lhe
as faces.
- Você e Lucília... Com
toda a certeza julgam que estou cometendo uma traição. Quando falo em minha
casa, no prazer de rever as minhas criaturas queridas, ofendo a vocês...
Com a ponta do sapato
Flávio esmagava pequeninas plantas, num movimento obstinado.
- Elza...
Pegou-lhe o braço.
- Quer que me alegre,
me envaideça...
Riu excitado, nervoso.
- ... por mandá-la de
volta para o seu noivo?
- Você nunca falou
nele.
- Ah... era um perigo
longínquo.
Ainda é, disse Elza,
penetrando os olhos de Flávio. Está longe. Está na Inglaterra.
- Mas volta, volta
breve para você. Como a imaginei há pouco... Numa igreja toda iluminada, linda
como uma imagem e pelo braço dele...
Olhou-a de perto com os
olhos apertados, maldosos.
Beijos não deixam
marca, felizmente para você.
- Flávio!
Elza empalideceu.
- Por que mudou assim?
Por que esse ódio?
Teve uma imensa vontade
de fugir. Sentiu a vista turva. Voltou-lhe as costas. Encaminhou-se para o
portão. Pisava um mundo fantástico e desconhecido, com uma angústia de
fugitiva. Quando atingiu a saída, Flávio puxou-a pela mão. Elza resistiu.
"Ouvira demais, não havia dúvida", dizia com uma voz fria que a si
mesma assombrava.
- Escute... Você há de
se arrepender a vida toda, se não me ouvir.
Ela resistia, procurava
retirar a mão, vibrante, nervosa, toda rosada. Ele largou-lhe a mão. Elza abriu
resolutamente o portão, mas, antes que passasse à estrada, sentiu-se presa pela
cintura.
- Não adianta teimar,
disse Flávio. Você tem que me ouvir.
Guiou-a até junto a uma
pereira florida, Encostou-a nela. Com as mãos coladas ao tronco da árvore,
junto dos seus braços, prendeu-a:
- Sei a idéia que fazia
de mim... Um fraco. Um fraco de corpo e de espírito. E está muito admirada com
a minha atitude. Então você não compreende como essa separação é cruel, é
desumana? Crê que eu não tenho nervos? Vê-la de volta para retomar a mesma vida
de há um ano...
- Deixe-me.
Os braços e Flávio
caíram.
- Você não sabe lutar
pelo que quer? Você me quer realmente? disse Elza com profunda emoção.
- Quero-lhe, como nunca
foi nem será querida por outra pessoa.
A sua voz se tornava
mais lenta, bizarramente pausada, e como que envelhecida.
- Toda a minha vida,
toda a minha esperança eu ponho em você. Não tenho ninguém que me queira, e ao
cabo de tanto tempo minha família já se distanciou de mim. Tenho amizades que
duram pouco. Iludi-me a mim mesmo criando em você uma companheira de solidão.
Nada lhe podia oferecer senão esse mundo de amor e de ternura disperso nos
outros homens, mas que eu conservo intacto para você. Afundei-me tanto na nossa
felicidade futura que a vivi quase. Agora... vejo as coisas friamente. Você
curada, pronta a retomar o fio interrompido das suas relações, das suas
amizades, e eu aqui... preso para sempre.
Contraiu a fisionomia,
cerrou os punhos, sacudiu os ombros, encostou-se ao lado oposto da árvore, com
a cabeça repousando nos braços cruzados.
Elza tocou-lhe no ombro.
- Você há de ficar bom.
Há de descer um dia curado. Seremos felizes como toda a gente.
- Não sente o que
diz... Não sente...
Olhou-a com os olhos
vermelhos.
- Deixe-me descer com a
lembrança do seu carinho, da sua companhia. Espere um tempo... Talvez possa
descer, esteja curado. Talvez eu tenha que subir, adoeça de novo.
Um pequeno galho em que
o vento bulira prendeu o cabelo de Elza. Ela puxou a cabeça, desprendeu-se. Uma
chuva de flores caiu sobre eles. Flávio esteve a vê-la agitando os cabelos,
sacudindo o vestido, atirando as flores ao chão. Tomou-a bruscamente nos
braços. Inclinou a cabeça, olhou de perto, cada vez mais perto, aqueles lábios
úmidos que se descerravam. Esteve assim, sentindo-lhe a respiração e
contemplando o rosto adorado. Uma abelha zumbiu pertinho. Ele inclinou-se ainda
mais, ia tocar naqueles lábios que esperavam o beijo, mas largou Elza
subitamente.
- Não devo beijá-la.
Vamos embora.
(Floradas na serra,
capítulo 39, 1939.)
*
Escritora, membro da Academia Brasileira de Letras
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