Descoberta
do cotidiano
* Por Pedro J.
Bondaczuk
A cada novo amanhecer, descubro o cotidiano. Embora,
para os mais desatentos, um dia se pareça
rigorosamente com outro (especialmente para os ociosos e os entediados),
eles nunca são iguais. Podem, até, ser semelhantes, parecidos ou coisa que o
valha. Mas cada um deles tem o seu diferencial, para melhor ou para pior. Basta
que atentemos para as diferenças e principalmente para as nuances. Alguns,
trazem-nos alegrias surpreendentes. Outros... protagonizam alguma mágoa, algum
fracasso, algum tropeço ou até mesmo alguma tragédia. Estas, todavia,
(felizmente) também passam, por piores que sejam suas seqüelas e/ou
conseqüências.
Tenho um fascínio especial pelo mar. A razão? Não
sei explicar. Talvez seja uma ligação atávica, ancestral, adormecida no
inconsciente. Afinal, alguns cientistas dizem que a vida surgiu nos oceanos.
Claro que é uma especulação. Nenhum deles esteve lá, no princípio dos tempos,
para testemunhar essa gênese. De qualquer forma, nascemos em meio líquido, que
simula o mar. Passamos nossos primeiros nove meses de vida nadando, na bolsa
amniótica que nos protege e possibilita nossa formação e desenvolvimento. Somos
pois, na origem, seres marinhos.
É possível, porém, que esse meu fascínio pelo mar tenha
sua origem na passagem da infância para a adolescência, na ávida leitura de
livros como “Dois anos ao pé do mastro”, “A Ilha do Tesouro”, “Aventura nos
Mares do Sul”, “Robinson Crusué”, “O Velho e o Mar” e essa incrível obra-prima
de Herman Melville, que é “Moby Dick”. Sempre que posso (o que é cada vez mais
raro), desço para o litoral. Quando me é possível, viajo para o Rio de Janeiro,
cidade que é a minha paixão e onde passei os seis melhores meses da minha vida,
de sonhos e de fantasias, quando lá morei.
A maioria das vezes, no entanto, meu destino são as
praias de Caraguatatuba e, principalmente, de Ubatuba. Nestas, inúmeras vezes
repeti o gesto do Padre José de Anchieta, de escrever poemas na areia. Alguns,
tive o capricho de copiar em papel e tenho-os até hoje. A maioria, contudo, só
as ondas testemunharam, absorveram e apagaram. Eram bons? Eram maus? Eram
sofríveis? Nunca saberei. Ninguém saberá.
Freqüentei, em tempos menos bicudos, as lindas
praias do Nordeste, de Salvador, de Maceió, do Recife e tantas outras. Nunca
adotei, nessas ocasiões, o jeitão típico do turista, até para a minha
segurança, mas, principalmente, para que pudesse gozar das delícias dessas
praias com privacidade, sem ser incomodado por ninguém. Em meus passeios lentos
e sem destino, não levo comigo nada de valor, que possa despertar a cobiça de
trombadinhas e de trombadões, como máquina fotográfica, celular, Ipod ou
qualquer outra coisa do gênero. Nem mesmo relógio de pulso uso nessas oportunidades.
Pude testemunhar, entre aterrorizado e divertido,
vários arrastões, no Rio de Janeiro, notadamente em Copacabana, Ipanema e
Leblon. Não fui vítima de nenhum, jamais. Os “gafanhotos” nunca viram, comigo,
nada que lhes despertasse a atenção e a cobiça: nem máquina fotográfica, nem
celular, nem Ipod, nem mesmo um reles e vagabundo relógio de pulso. Mas é
assustadora a horda que avança sobre os bens dos incautos banhistas. Nem mesmo
toalhas, gorros, bonés e outras quinquilharias de valor ínfimo eles perdoam.
O leitor já presenciou, alguma vez, um ataque de
gafanhotos? Eu já! Foi em minha terra natal, em Horizontina, no Rio Grande do
Sul. Eu tinha, na ocasião, apenas cinco anos de idade, mas nunca mais esqueci
aquele espetáculo assustador. Foi na entrada do verão de 1948. Eu estava na
varanda da minha casa, quando, subitamente, o céu escureceu. Pensei que fosse
chover. Mas não era chuva. Não tardou para que eu visse centenas de empregados
de sítios e fazendas ao redor, portando tochas, batendo panelas, latas e tudo o
que fizesse barulho, correndo, esbaforidos, de um lado para o outro, no afã de espantar
os milhões (sem nenhum exagero) de insetos que se precipitavam sobre as plantas.
A densa nuvem era proveniente da margem argentina do
Rio Uruguai. Em poucos minutos, as lavouras de milho, de trigo, de soja e
outras tantas se viram reduzidas a meros restos. Quem tinha alimentos estocados
em celeiros se deu bem. Quem não tinha... precisou recorrer a vizinhos e ao
governo. Os gafanhotos arrasaram tudo, absolutamente tudo. E, da forma que vieram,
se foram, deixando para trás o caos e a desolação. Aquele foi um ano horrível,
de privações e de desespero, para os agricultores da região.
Os participantes de arrastões me lembram esses
vorazes e daninhos insetos, praga milenar que assola os povos há milênios, sem
que haja uma forma eficaz de se defender dela. Os trombadinhas e trombadões
surgem, de repente, na praia, vindos de vários lugares diferentes, surrupiam,
em questão de minutos, tudo o que podem, de surpresa, sem dar nenhum tempo de
reação às vítimas, e se dispersam por becos, vielas, ruas e avenidas, em
restaurantes e botecos dos arredores, quando a polícia pelo menos esboça um
princípio de ação.
Dei voltas e mais voltas neste meu texto apenas para
falar da descoberta do cotidiano. É que um assunto puxa outro e, quando nos
damos conta, não falamos nada do tema que queríamos abordar. Afinal, as
conversas entre amigos não são sempre assim? Claro que são!
Sim, descubro o cotidiano a cada manhã, atento aos
seus detalhes, até na condição de escritor. Explico: é nele que busco os temas
sobre os quais vou escrever. É o dia-a-dia, aparentemente rotineiro e banal,
que me abastece de assunto, por exemplo, para as dez crônicas semanais que
preciso produzir, por força de compromissos contratuais que assumi.
O tema em questão me foi suscitado por um texto de
Antonio Cândido, escrito quando eu tinha apenas um ano e meio de idade, em 16
de julho de 1944, publicado no jornal Folha da Manhã, que tive a feliz
oportunidade de ler apenas hoje. A palavra escrita tem essa vantagem sobre a
comunicação através de outros meios, principalmente a oral: a da permanência. A
referida crônica tem o título “Perto do Coração Selvagem”, e consta do livro
“Figuras do Brasil – 80 autores em 80 anos de Folha”, comemorativo ao 80º
aniversário desse tradicional jornal paulistano.
Em determinado trecho, Antonio Cândido constata: “A
descoberta do cotidiano é uma aventura sempre possível, e o seu milagre uma
transfiguração que abre caminhos para mundos novos”. E não é?! Entre tantas
coisas novas que descobri neste dia, que não foram poucas, (e para cujo enredo
dei minha modesta, diria ínfima, contribuição) está a “descoberta” desse
instigante texto, que enriqueceu um pouquinho mais meu acervo de conhecimentos.
Valeu a pena, portanto. Sempre vale. Tudo vale, “se a alma não é pequena”, diria
Fernando Pessoa.
* Jornalista,
radialista e escritor. Trabalhou na Rádio Educadora de Campinas (atual
Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor do Diário do Povo e do
Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico de arte. Em equipe,
ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos livros “Por uma nova
utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos), além de “Lance
Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com. Twitter:@bondaczuk
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