A face desarmada
* Por Daniel Santos
Há
vezes em que uma simples consulta ao passado pode nos dar a certeza de termos
já vivido o melhor, embora não tivéssemos, então, a mínima consciência de que
aquele tal momento era, sim, muito especial.
Entendi
isso ainda na infância, quando vi meu pai despertar certa madrugada franzido de
azias e estender o braço sobre minha mãe adormecida para alcançar o antiácido
no criado-mudo. E aconteceu.
A
luz do abajur incidia em cheio sobre o rosto dela e, ao observá-la assim sem os
artifícios da maquiagem e de certo distanciamento próprio da convivência, ele
me pareceu ... Não havia mágoa, mas desapontamento.
Comparada
à foto de noiva no porta-retratos da cabeceira, mamãe distinguia-se da outra,
não mais fagueira, não mais louçã: as faces caíam sobre o queixo duplo e a
grenha grisalha debochava de toda a sua figura!
Papai
tomou o remédio e beijou a testa da esposa antes de apagar a luz. Depois,
imergiu no escuro e aceitou o silêncio. Não emitiu sequer um muxoxo de inconformismo.
Houve ainda dois pigarros. Logo, ressonava.
* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e
redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de
São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou
"A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e
"Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o
romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para
obras em fase de conclusão, em 2001.
James Dean não envelheceu. A vida tem uma lei primordial: morrer jovem, ou envelhecer.
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