Oportunidade perdida
* Por Pedro J. Bondaczuk
O escritor William Faulkner,
notoriamente um homem bem-sucedido na vida, como um dos maiores clássicos da
literatura norte-americana e mundial, tinha uma tese bem peculiar acerca do
sucesso. Afirmava que se tratava de um "matador" da criatividade,
dessa ânsia de perfeição que todas as pessoas devem ter, seja qual for a sua
atividade, até o último instante da existência.
O italiano Alberto Morávia
expressou a mesma idéia, em tempos recentes. Estariam ambos com a razão? Os
fracassados seriam os verdadeiros gênios das artes e das ciências? Seriam os
chamados donos da verdade? Enxergariam aquilo que eventualmente ninguém mais
vê? Claro que não! E nem os dois escritores fizeram qualquer apologia do
fracasso.
Ambos quiseram, apenas, alertar
sobre a tendência que todos temos à acomodação, a "dormir sobre os
louros" conquistados. Afinal, o satisfeito consigo próprio é, na verdade,
um derrotado. Ademais, não foram apenas William Faulkner e Alberto Morávia que
escreveram a respeito. Ressalte-se que é voz corrente que o sucesso transforma
para pior as pessoas. Que os bem-sucedidos se tornam arrogantes, prepotentes e
indiferentes. Em alguns casos, isso, de fato, ocorre, mas está longe de ser a
regra. É mera exceção.
Quem age assim, é bem-sucedido
por pouco tempo. Não tarda para que despenque da sua arrogância. Seu sucesso é
parcial e transitório. O fracassado, sim, é perigoso. Alimenta antagonismos,
mágoas e ressentimentos e busca derrubar todos que vê pela frente. Por isso,
sou levado a concordar (em parte) com Sommerset Maugham, quando constata: “A
idéia de que o sucesso deteriora as pessoas, fazendo-as vaidosas, egoístas e
complacentes consigo próprias é errônea. Ao contrário, para a maioria delas,
torna-as modestas, tolerantes e gentis. O fracasso é que faz as pessoas cruéis
e amargas”.
Mas... nem tanto ao céu e nem
tanto à terra. Há sucessos e sucessos, assim como há fracassos e fracassos.
Tudo é muito sutil, muito vago, muito tênue. Não raro achamos que fomos bem-sucedidos
em alguma empreitada quando, na verdade, fracassamos, e vice-versa. Só o tempo
pode dizer quando obtivemos uma coisa ou outra.
O tema vem a propósito de uma
situação que ocorreu comigo há exatos 44 anos. Eu atravessava, na época, uma
fase de intensa criatividade, que nunca mais se repetiu com a mesma
intensidade. Fazia dois anos que trabalhava numa emissora de rádio do ABC e já
havia conquistado um troféu de “locutor revelação” da região.
Simultaneamente, dava meus
primeiros passos no jornalismo, em um pequeno jornal de Santo André, como
repórter (dois anos, portanto, antes de me tornar editor, função que exerço até
hoje) e meus textos eram muito elogiados pela chefia. Posso dizer que estava no
auge do sucesso (pelo menos do que eu entendia que ele fosse).
Foi quando conheci o músico e
compositor Edmar Fenício. O sujeito sabia tudo de violão, do clássico ao
popular. Compunha músicas e mais músicas, que se limitava a mostrar aos amigos,
e nunca pensou em procurar um bom cantor que as gravasse. Foi quando caíram-lhe
nas mãos alguns poemas meus que, pelo visto, o encantaram. Ele pediu licença
para musicá-los e eu, mais por curiosidade do que outra coisa, concordei. O
resultado foi espetacular.
Ele passou a cantar essas nossas
composições num bar da Rua Santa Catarina, em São Caetano do Sul,
onde nos reuníamos, todas as sextas-feiras, para ouvir boa música, jogar
conversa fora e tentar “salvar o mundo”, já que nosso grupo contava com poetas,
jornalistas, advogados, sociólogos etc., alguns muito bem-sucedidos na vida
mais tarde e cujos nomes prefiro não declinar. Não sei se eles gostariam de
lembrar daqueles tempos loucos de juventude, anteriores ao golpe de 1964.
Na ocasião, a Bossa Nova estava
no auge. Edmar, mágico do violão, reproduzia a caráter a célebre batida
descoberta por João Gilberto, que deu origem a esse movimento musical que
revolucionou a MPB. Num determinado dia, entre uma bebida e outra, ambos já um
tanto “pra lá de Marrakesh”, o compositor convidou-me para ser seu parceiro
fixo. Topei na hora. Compusemos, sem favor algum, em torno de 50 sambas, que me
pareceram excepcionais.
Como o Edmar era o músico, deixei
com ele todas as letras, para que as colocasse no pentagrama. Não guardei uma
única comigo. Claro que foi uma imensa bobagem da minha parte. Ademais, meu
ilustre amigo vivia me prometendo que “qualquer dia”, iria me dar cópias do
calhamaço de composições que tínhamos elaborado em conjunto. Foi mais
longe: disse que me daria uma fita, com todas as nossas músicas devidamente
interpretadas por um cantor, nosso amigo.
Naquele tempo, os gravadores não
eram nem sombra dos de hoje. Tinham, sem nenhum exagero, as dimensões de uma
enorme mala de viagens, com dois rolos enormes. Não dava para ficar levando de
um lado para o outro, aquele trambolho. Eu tinha o meu, se não me engano da
marca “RCA Victor”. Esperei, esperei e esperei que o Edmar cumprisse a
promessa, e nada. A bem da verdade, espero até hoje.
Subitamente, a vida nos separou.
Cada qual seguiu o seu caminho e nunca mais nos encontramos. Sei que meu amigo
compositor não se apropriou das nossas composições para fins comerciais. O cara
podia ser tudo, menos desonesto. Afinal, nunca ouvi, em lugar ou tempo algum,
as músicas que fizemos juntos. Como ele era um sujeito bagunçado (como a maioria
dos gênios), certamente perdeu aquelas preciosidades, que poderiam nos render
fama e, quem sabe (embora ache um tanto duvidoso) fortuna.
Aquelas tantas e tantas letras,
brotadas da minha mais refinada inspiração, perderam-se para sempre. É como se
jamais tivessem existido. A bem da verdade, eu não ficava nada a dever ao Edmar
em termos de desorganização. Quando digo isso, as pessoas que trabalham comigo,
notadamente meus subordinados, não acreditam.
Ocorre que, com o treinamento
proporcionado pela função de editor que exerço, descambei de um extremo ao
outro. De um sujeito totalmente desorganizado, tornei-me uma pessoa meticulosa
em excesso, dessas que causam irritação nos colegas que não conseguem se
organizar. Coloquei, até, na minha ilha de edição da redação, este lembrete,
que os repórteres detestam: “Da desordem das coisas, vem a desordem das
idéias”.
Todavia é tarde para me organizar.
Perdi, por não ser organizado (um pouquinho que fosse), entre outras coisas, a
oportunidade de me projetar na MPB. Exagero? Quem sabe! Não que eu fosse um
Vinicius de Moraes ou um Chico Buarque, longe disso. Mas até que as minhas
letras (e sobretudo as músicas do Edmar), não só davam para o gasto, como iam
(sem falsa modéstia) um pouco além disso.
Nunca mais me meti a dar uma de
compositor. Nem por isso, no entanto, o “fracasso” (se é que a experiência
possa ser rigorosamente classificada dessa forma) deixou-me amargo e cruel,
como previu Sommerset Maugham. Talvez tenha deixado, apenas, um tantinho
frustrado, o que é normal, não é mesmo paciente leitor? Acaso você não ficaria,
se estivesse em meu lugar?
* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio
Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor
do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico
de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos
livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos),
além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O
Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com.
Twitter:@bondaczuk
Não sei se é o mesmo texto, mas essa história já "deu as caras" por aqui. Considero que foi fracasso, e apoio integralmente a frase "da desordem das coisas, vem a desordem das idéias".
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