Grande sertão: veredas
* Por
João Guimarães Rosa
Nonada. Tiros que o
senhor ouviu foram de briga de homem não, Deus esteja. Alvejei mira em árvore,
no quintal, no baixo do córrego. Por meu acerto. Todo dia isso faço, gosto;
desde mal em minha mocidade. Daí, vieram me chamar. Causa dum bezerro: um
bezerro branco, erroso, os olhos de nem ser se viu; e com máscara de cachorro.
Me disseram; eu não quis avistar. Mesmo que, por defeito como nasceu,
arrebitado de beiços, essa figurava rindo feito pessoa. Cara de gente, carão de
cão: determinaram era o demo. Povo prascóvio. Mataram. Dono dele nem sei quem
for. Vieram emprestar minhas armas, cedi. Não tenho abusões. O senhor ri certas
risadas... Olhe: quando é tiro de verdade, primeiro a cachorrada pega a latir,
instantaneamente depois, então, se vai ver se deu mortos. O senhor tolere, isto
é o sertão. Uns querem que não seja: que situado sertão é por os campos-gerais
a fora a dentro, eles dizem, fim de rumo, terras altas, demais do Urucaia.
Toleima. Para os de Corinto e do Curvelo, então o aqui não é dito sertão? Ah,
que tem maior! Lugar sertão se divulga: é onde os pastos carecem de fechos;
onde um pode torar dez, quinze léguas, sem topar com casa de morador; e onde
criminoso vive seu cristo-jesus, arredado do arrocho de autoridade. O Urucuia
vem dos montões oestes. Mas, hoje, que na beira dele, tudo dá fazendões de
fazendas, almargem de vargens de bom render, as vazantes; culturas que vão de
mata em mata, madeiras de grossura, até ainda virgens dessas lá há. O gerais
corre em volta. Esses gerais são sem tamanho. Enfim, cada um o que quer aprova,
o senhor sabe: pão ou pães, é questão de opiniães... O sertão está em toda a
parte.
Do demo? Na gloso.
Senhor pergunte aos moradores. Em falso receio, desfalam no nome dele dizem só:
o Que-Diga. Vôte! não... Quem muito se evita, se convive. Sentença num
Aristides o que existe no buritizal primeiro desta minha mão direita, chamado a
Vereda-da-Vaca-Mansa-de-Santa-Rita todo mundo crê: ele não pode passar em três
lugares, designados: porque então a gente escuta um chorinho, atrás, e uma
vozinha que avisando: "Eu já vou! Eu já vou!..." que é o capiroto, o
que-diga... E um Jisé Simpilício quem qualquer daqui jura ele tem um capeta em
casa, miúdo, satanazim, preso obrigado a ajudar em toda ganância que executa;
razão que o Simpilício se empresa em vias de completar de rico. Apre, por isso
dizem também que a besta pra ele rupeia, nega de banda, não deixando, quando
ele quer amontar... Superstição. Jisé Simpilício e Aristides, mesmo estão se
engordando, de assim não-ouvir ou ouvir. Ainda o senhor estude: agora mesmo,
nestes dias de época, tem gente porfalando que o Diabo próprio parou, de
passagem, no Andrequicé. Um Moço de fora, teria aparecido, e lá se louvou que
para aqui vir normal, a cavalo, dum dia-e-meio ele era capaz que só uns vinte
minutos bastava... porque costeava o Rio do Chico pelas cabeceiras! Ou, também,
quem sabe sem ofensas não terá sido, por um exemplo, até mesmo o senhor quem se
anunciou assim, quando passou por lá, por prazido divertimento engraçado?
Há-de, não me dê crime, sei que não foi. E mal eu não quis. Só que uma
pergunta, em hora, às vezes, clareia razão de paz. Mas, o senhor entenda: o tal
moço, se há, quis mangar. Pois, hem, que, despontar o Rio pelas nascentes, será
a mesma coisa que um se redobrar nos internos deste nosso Estado nosso,
custante viagem de uns três meses... Então? Que-Diga? Doideira. A fantasiação.
E, o respeito de dar a ele assim esses nomes de rebuço, é que é mesmo um querer
invocar que ele forme forma com as presenças!
Não seja. Eu,
pessoalmente, quase que já perdi nele a crença, mercês a Deus; é o que ao
senhor lhe digo, à puridade. Sei que é bem estabelecido, que grassa nos
Santos-Evangelhos. Em ocasião, conversei com um rapaz seminarista, muito
condizente, conferindo no livro de rezas e revestido de paramenta, com uma vara
de maria-preta na mão proseou que ia adjutorar o padre, para extraírem o Cujo,
do corpo vivo de uma velha, na Cachoeira-dos-Bois, ele ia com o vigário do
Campo-Redondo... Me concebo. O senhor não é como eu? Não acreditei patavim.
Compadre meu Quelemém descreve que o que revela efeito são os baixos espíritos
descarnados, de terceira, fuzuando nas piores trevas e com ânsias de se
travarem com os viventes dão encosto. Compadre meu Quelemém é quem muito me
consola Quelemém de Gois. Mas ele tem de morar longe daqui, da Jijujã, Vereda
do Buriti Pardo... Arres, me deixe lá, que em endemoninhamento ou com encosto o
senhor mesmo deverá de ter conhecido diversos homens, mulheres. Pois não sim?
Por mim, tantos vi, que aprendi. Rincha-Mãe, Sangue-d’Outro, o Muitos-Beiços, o
Rasga-em-Baixo, Faca-Fria, o Fancho-Bode, um Treciziano, o Azinhavre... o
Hermógenes... Deles, punhadão. Se eu pudesse esquecer tantos nomes... Não sou
amansador de cavalos! E, mesmo, quem de si de ser jagunço se entrete, já é por
alguma competência entrante do demônio. Será não? Será?
De primeiro, eu fazia e
mexia, e pensar não pensava. Não possuía os prazos. Vivi puxando difícil de
difícel, peixe vivo no moquém: quem mói no asp’ro, não fantaseia. Mas, agora,
feita a folga que me vem, e sem pequenos dessossegos, estou de range rede. E me
inventei neste gosto, de especular ideia. O diabo existe e não existe? Dou o
dito. Abrenúncio. Essas melancolias. O senhor vê: existe cachoeira; e pois? Mas
cachoeira é barranco de chão, e água se caindo por ele, retombando; o senhor
consome essa água, ou desfaz o barranco, sobra cachoeira alguma? Viver é
negócio muito perigoso...
Explico ao senhor: o
diabo vige dentro do homem, os crespos do homem ou é o homem arruinado, ou o
homem dos avessos. Solto, por si, cidadão, é que não tem diabo nenhum. Nenhum!
é o que digo. O senhor aprova? Me declare tudo, franco é alta mercê que me faz:
e pedir posso, encarecido. Este caso por estúrdio que me vejam é de minha certa
importância. Tomara não fosse... Mas, não diga que o senhor, assisado e
instruído, que acredita na pessoa dele?! Não? Lhe agradeço! Sua alta opinião
compõe minha valia. Já sabia, esperava por ela já o campo! Ah, a gente, na velhice,
carece de ter sua aragem de descanso. Lhe agradeço. Tem diabo nenhum. Nem
espírito. Nunca vi. Alguém devia de ver, então era eu mesmo, este vosso
servidor. Fosse lhe contar... Bem, o diabo regula seu estado preto, nas
criaturas, nas mulheres, nos homens. Até: nas crianças eu digo. Pois não é
ditado: "menino trem do diabo"? E nos usos, nas plantas, nas águas,
na terra, no vento... Estrumes... O diabo na rua, no meio do redemunho...
Hem? Hem? Ah. Figuração
minha, de pior pra trás, as certas lembranças. Mal haja-me! Sofro pena de
contar não... Melhor, se arrepare: pois, num chão, e com igual formato de ramos
e folhas, não dá a mandioca mansa, que se come comum, e a mandioca-brava, que
mata? Agora, o senhor já viu uma estranhez? A mandioca-doce pode de repente
virar azangada motivos não sei; às vezes se diz que é por replantada no terreno
sempre, com mudas seguidas, de manaíbas vai em amargando, de tanto em tanto, de
si mesma toma peçonhas. E, ora veja: a outra, a mandioca-brava, também é que às
vezes pode ficar mansa, a esmo, de se comer sem nenhum mal. E que isso é? Eh, o
senhor já viu, por ver, a feiúra de ódio franzido, carantonho, nas faces duma
cobra cascavel? Observou o porco gordo, cada dia mais feliz bruto, capaz de,
pudesse, roncar e engulir por sua suja comodidade o mundo todo? E gavião,
corvo, alguns, as feições deles já representam a precisão de talhar, para
adiante, rasgar e estraçalhar a bico, parece uma quicé muito afiada por ruim
desejo. Tudo. Tem até tortas raças de pedras, horrorosas, venenosas que
estragam mortal a água, se estão jazendo em fundo de poço; o diabo dentro delas
dorme: são o demo. Se sabe? E o demo que é só assim o significado dum azougue
maligno tem ordem de seguir o caminho dele, tem licença para campear?! Arre,
ele está misturado em tudo.
Que o que gasta, vai
gastando o diabo de dentro da gente, aos pouquinhos é o razoável sofrer. E a
alegria de amor compadre meu Quelemém diz. Família. Deveras? É, e não é. O
senhor ache e não ache. Tudo é e não é... Quase todo mais grave criminoso
feroz, sempre é muito bom marido, bom filho, bom pai, e é bom
amigo-de-seus-amigos! Sei desses. Só que tem os depois e Deus, junto. Vi muitas
nuvens.
[...]
* Escritor
e médico mineiro, membro da Academia Brasileira de Letras
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