Sobre ser mulher
* Por
Elaine Tavares
Nunca me ocorreu ser
mulher. Na família, jamais vivi qualquer
opressão ou discriminação. Desde bem pequena, mergulhada no mundo dos livros,
aprendi que para conquistar os sonhos que brotavam na cabeça, tudo o que tinha
de fazer era levantar e agir. A condição feminina nunca se colocou como limite
para nada. A luta política, o estudo, o trabalho. Fazia o que tinha de fazer.
Com 20 anos fui trabalhar na televisão. Espaço masculino. Ali – eu nem sabia –
a mulher, ou era capacho, ou era puta. Eu, nem uma coisa, nem outra. Meu
negócio era trabalhar. Repórter, viajando pelos caminhos com uma equipe de
homens, nunca reparei qualquer olhar de soslaio. Não havia. Na firmeza, eu
cavava meu lugar.
Talvez, por conta
disso, as lutas ditas feministas nunca me atraíram. Primeiro porque eu sempre
acreditei que as questões referentes à mulher tinham de estar imbricadas na
luta de classe. Mesmo a liberdade sexual, da qual usufruí sem nunca pensar
sobre ela, me parecia uma luta estranha. Ainda assim, naqueles dias de juventude,
eu apoiava, custando a crer que alguém pudesse não ter o direito de dispor do
seu corpo como bem quisesse. Via mais as coisas pela ótica do Malleus
Maleficarum – O Martelo das Feiticeiras – livro que marcou minha vida – o qual
narrava os horrores da inquisição com as mulheres chamadas de feiticeiras por
ousarem ter poder no mundo dos homens, do que pelo Relatório Hite – livro que
teorizava sobre o orgasmo feminino.
Depois, entendendo
melhor as coisas do mundo, foi que me vi mulher. Então, vivi a experiência da
centopeia que andava garbosa com suas cem pernas sem nunca pensar sobre elas, e
quando alguém lhe perguntou: como consegues andar com tantas pernas, ela se deu
conta do problema que era e nunca mais pode andar, tropeçando nas pernas. Por
algum tempo me obriguei, tropeçando, a olhar para a realidade observando a
condição da mulher. Tantas, oprimidas por pais, maridos, patrões. Algumas nem
sequer ganhavam o mesmo salário que os homens na mesma função. A violência
doméstica, as mulheres do oriente com seus corpos cobertos, sem poder estudar,
as comunidades que mutilavam as meninas. As terríveis violações que as mulheres
sofrem nas guerras.
Percebi então que havia
coisas relacionadas com a mulheridade que estavam para além da classe. Como não
ser solidária com uma mulher oprimida, ainda que ela pertencesse à burguesia ou
a aristocracia? Mas, ainda assim, entendia que isso tinha muito mais a ver com
o sentimento contra a injustiça do que com a condição feminina. Também conheci
homens oprimidos por mães, por esposas e patroas. E com eles marchei. De alguma
forma sempre desconfiei dessa fragmentação e hierarquização da dor. Esse mundo
de “tribos”. Luta das mulheres, luta dos negros, luta das pessoas com
deficiência, luta dos índios. No frigir dos ovos, tudo era uma coisa só. E, ao
ser despedaçada, mais servia ao sistema opressor do que à causa.
Assim, mesmo
patrulhada, nunca queimei sutiã e nem gritei pela igualdade com os homens. Não
quero igualdade. Somos desiguais. Entendo que como mulheres, negros, deficientes
ou índios, temos de nos unir, na semelhança, para sermos fortes em batalhas
pontuais, mas a luta tem de ser por um projeto de mundo que se diferencie desse
que aí está. Isso é o que nos alinha, o que nos dá sul. Não estou no projeto da
Kátia Abreu, nem do Angela Amin, ou da Narcisa Tamborindegui. Não estou no
projeto do Pelé nem do Barak Obama. Então, posso me compadecer se alguns deles
sofrer violência ou preconceito. Mas, meu caminho é outro.
Vivo mulheridade com
todas as suas belezas. As fases lunares, as delicadezas, a ternura, a emoção, o
desejo de esmaltes e batons. Vivo a mulheridade na forma de estar no mundo, sem
oprimir quando com poder, usando e abusando das dessemelhanças. Na luta das
mulheres quando necessário, feminina todos os dias. Assim, como a centopeia
antes de saber dos pés. Sendo mulher.
E nesse passo
cadenciado, de salto alto, vou carregando os tijolos da construção da sociedade
justa, sem discriminação, sem preconceito, sem violência. Esse mundo no qual
nem o homem nem a mulher sejam lobos de si mesmos. Essa utopia... Vivo a
mulheridade, sempre, mas sem nunca esquecer de onde eu venho nem a classe a
qual pertenço. Sou, penso e luto. Essa é a minha opção!
*
Jornalista de Florianópolis/SC
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