Bibliotecárias
* Por
Ignácio de Loyola Brandão
Apanhei o
minissanduíche triangular de pão branco, macio, recheado com duas fatias, uma
de queijo prato, outra de presunto, coloquei na boca. Desapareceram as centenas
de bibliotecárias, emudeceu o som, sumiram os garçons que ocupavam o hall do
Masp, apagou-se o coquetel e me vi no trem da Companhia Paulista com minha mãe
desamarrando as pontas do guardanapo levemente úmido e tirando o lanche que
tanto esperávamos, meu irmão Luis e eu. Farnel feito com capricho. Cada
sanduíche envolto em papel impermeável que conservava o frescor do pão. Não
existia papel de alumínio, o mundo era rudimentar e a indústria brasileira,
incipiente. Um dia alguém há de escrever sobre como evoluímos nas pequenas
coisas que nos trouxeram conforto. Na noite anterior, meu pai tinha chegado com
o queijo, o presunto e o pão encomendado havia uma semana na padaria do Lima.
Não existia pão de forma industrializado nem supermercados, encomendava-se nas
padarias. Minha mãe limpava a mesa, colocava a toalha e preparava os
sanduíches, pronta a segurar a mim e ao Luis, já que queríamos filar
sorrateiramente uma fatia de presunto ou queijo. Era tudo contado. Gente
remediada comia presunto somente em viagem ou quando adoecia.
Aqueles momentos
voltaram durante o coquetel servido no Masp, após a homenagem do Conselho Regional
de Biblioteconomia a algumas pessoas que contribuíram para este mundo essencial
na cultura de qualquer país, as bibliotecas. Apanhei o meu prêmio que leva o
nome de Laura Russo, a mulher que conseguiu a regulamentação da profissão em
1962 e foi diretora da Mário de Andrade, biblioteca ícone em São Paulo. Na hora
de agradecer, cada um tinha dois minutos, igual ao Oscar, mas, igual ao Oscar,
cada um falou quanto quis, uns menos, outros mais. Lembrei as minhas
bibliotecas. A primeira, a do meu pai, sempre por mim celebrada, enorme para a
época, tratando-se de um ferroviário. Nela, líamos juntos, ele e eu. A segunda,
a da escola de Lourdes Prada, em Araraquara, onde fui apresentado à clássica
Coleção de Contos de Fadas do Mundo, da Editora Vecchi, abrindo meu mundo.
Uma vizinha, Odete
Malkomes, possuía O Tesouro da Juventude completo, mantido em uma estante
fechada. Odete agia como uma espécie de bibliotecária, emprestava um volume por
vez, verificava as condições do retorno, se o livro estava limpo, sem manchas,
sem páginas arrancadas. Uma parente, Maria do Carmo Mendonça, tinha toda a
Coleção Infantil Melhoramentos (adoraria rever aquele conjunto deslumbrante de
cem livros), cujo número 1 foi O Patinho Feio. Maria do Carmo também era meio
bibliotecária, emprestava, marcava o que emprestava, vigiava, pedia de volta
numa data estipulada, sob pena de nunca mais emprestar, ameaça que me fazia
tremer. Com ela aprendi a ler no prazo.
Não me esqueci de
Marcelo Manaia, que regeu a Mário de Andrade de Araraquara (lá também tem uma)
por anos. Quando ele chegou, havia uma norma moralista que determinava: os
livros "fortes" deviam ficar trancados, emprestados somente a maiores
de idade. Entre os "fortes" estavam Jorge Amado e Pittigrilli. Pois
Marcelo, filho de um italiano consertador de sanfonas, simples, intuitivo,
espírito aberto, assumiu e liberou geral, entregava Jorge Amado às moçoilas e
até indicava as páginas em que havia cenas picantes. Gerações inteiras leram
todos os livros legíveis que ali existiam. Livros ilegíveis? Sim! Quem ia ler a
coleção da Revista dos Tribunais, imensa, em "jurídiquês" hermético?
Bibliotecas têm um
cheiro especial, atmosfera própria, uma luz particular. Quanto às
bibliotecárias, identifico-as pelo olhar. Olhem nos olhos delas, logo verão se
gostam do que fazem. Elas têm viço, como se dizia. Levam uma chama nos olhos
quando estão entre livros. Circulam pelos corredores entre estantes de modo
desenvolto, em passos leves de dança. Por menor que seja a biblioteca pública,
elas têm orgulho do que fazem, conhecem o papel que desempenham. Pena que
ganhem tão pouco, lutem tanto para manter a dignidade e o sustento. Maria
Cristina Barbosa de Almeida, agora à frente da Mário de Andrade de São Paulo -
restaurada, refeita, revitalizada -, disse bem sobre a penúria das
funcionárias, das gratificações que chegam atrasadas e em parcelas. Ela
sintetizou a vida de bibliotecárias, que trabalham por amor aos livros, às
literaturas e por nós, autores. Diante de uma bibliotecária devíamos nos curvar
em reverência.
Biblioteca, ah,
bibliotecas. Encerrei semana passada em Itapeva um circuito de seis cidades,
nas quais falei sobre as bibliotecas públicas. Passei por Itanhaém, Eldorado,
Ilha Comprida, Cananeia, Apiaí, Itapeva. Plateias maiores e menores, no meio de
livros, envolvidos pelo cheiro de papel velho e papel novo, nos reuníamos em
conversas informais, mostrando que literatura é prazer, não uma coisa
inacessível, como querem os acadêmicos. A Viagem Literária que fiz pela
terceira vez é o programa que leva escritores para 70 cidades paulistas, num
total de 350 eventos, com muitas falas, perguntas, fotos em celulares,
cafezinhos, sucos, bolos, biscoitos e broas de milho feitas muitas vezes pelas
próprias bibliotecárias. Ao voltar, a caminho de São Paulo, vim me lembrando de
uma viagem, no tempo em que a TIM levava autores pelo interior de vários
Estados. Programa que acabou, uma pena. Certa vez, em Monte Carmelo, Minas
Gerais, ao visitar a biblioteca na hora do almoço, encontrei-a sob os cuidados
de uma faxineira, que nada sabia da localização dos livros, de autores ou de
quantos volumes havia. Fiquei desanimado, pô, uma faxineira? Que descaso!
Arrependi-me de meu preconceito ao conversar com ela:
- E a senhora gosta da
biblioteca?
- Adoro esta hora. Todo
mundo sai para comer, fico sozinha, quietinha, não preciso lavar banheiros e
salas.
Apanho um livro, outro, acostumei a ler. É gostoso, saio voando, esqueço
o mundo. Que nunca percebam que leio os livros, se não me tiram daqui.
Não, não tirariam, o
mundo não é ruim assim.
* Escritor
e jornalista
Prefiro as livrarias às bibliotecas. O cheiro de mofo me desperta a asma, ainda que o sacrifício valha a pena.
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