Onde e quando a paulicéia desvairou
* Por
Raul Longo
Uma cidade tão
importante e significativa para o Brasil e não apenas em termos econômicos, não
apenas por ufanismos financeiros dos que através dela exploram o Brasil
explorando-a e explorando aos paulistanos também.
Quando vivia nesta São
Paulo, muitas vezes me espantava com o orgulho dos paulistanos por ser a maior
cidade do país e não entendia como se faziam incapazes de perceber o enorme
prejuízo que era para nós mesmos, sermos a maior cidade de um território tão
gigantesco. Não apenas a maior, como muitas vezes maior do que a segunda
concentração populacional do Brasil: o Rio de Janeiro.
Ficava abismado como
podíamos não perceber que a concentração de riquezas em São Paulo era geradora
da miséria de todo o restante do país e como isso se refletia na degradação da
própria São Paulo. Mas os moradores dos Jardins, do Morumbi, daquela então
ainda Avenida Paulista das mansões, e mesmo os da classe média de Moema, Vila
Mariana, Pompéia; eram demasiadamente fechados em seus confortos e tradições
para enxergar o crescimento das Vila Pavão, Brasilândia, Parizi e todo um
cinturão de pobreza que circundava a cidade e os ia enlaçando. Apenas pediam
por mais progresso, mais riquezas, mais consumo.
E veio o primeiro
Shopping Center, o Iguatemi da Brigadeiro Faria Lima, com show de Roberto
Carlos e tudo. Os paulistanos inflaram de orgulho por terem na cidade o
primeiro Shopping Center do Brasil. Mas não era verdade, Lúcia. Não era, pois o
primeiro shopping center do Brasil foi o Derby, fundado em Recife em 1899 pelo
Delmiro Gouveia, um empreendedor cearense ignorado pela maioria dos
paulistanos, mas que também foi quem construiu a primeira usina hidroelétrica
do país, iluminando um povoado sertanejo com o nome de Pedra, hoje município
Delmiro Gouveia.
Muito antes do Jardim
da Luz substituir o lusco-fusco dos lampiões de gás pelos postes elétricos de
iluminação pública, ou das famílias da Amaral Gurgel substituírem as lamparinas
de querosene pelas lâmpadas do Thomaz Alva Edison, naqueles interiores de
Alagoas os funcionários do cotonifício de Delmiro Gouveia já usufruíam da
iluminação elétrica em suas casas, na primeira vila residencial operária a ser
construída em alvenaria aqui no Brasil. E outra experiência inédita daqueles
operários, não apenas no país como no mundo, foi a de ao serem admitidos como
empregados de Delmiro, automaticamente se tornarem seus sócios. Esse modelo de
gestão só veio a ser empregado pelo socialismo Iugoslavo muitas décadas depois.
E tudo isso nos primeiros anos do século passado.
Acontece que os mesmos
empreendedores paulistas que iniciaram o processo demonstrado nesse vídeo,
provocando as anuais inundações da capital paulista de hoje, concluíram que o
desenvolvimento do sertão nordestino promovido por Delmiro Gouveia impediria o
progresso da cidade e do estado de São Paulo e associados aos capitalistas
ingleses resolveram a questão da necessária mão de obra para a construção
desses viadutos e canalizações desses rios aí documentados. Assim mataram
Delmiro Gouveia, destruíram sua indústria, a primeira usina hidroelétrica do
Brasil e a vila operária. Mas São Paulo cresceu e se tornou uma das maiores
cidades do mundo, entre a 4º e a 6ª em população dependendo de se considerar
apenas a região urbana ou toda região metropolitana, o que também faz variar
entre 11 milhões e 16 milhões de habitantes.
Lembro-me de São Paulo
com apenas 4 milhões e de quando, lá pelo início da década de 60, ainda daria
tempo para se consertar os profundos erros da imprevidência dos progressistas,
mas ao invés de se preocupar com isso a classe média da cidade preferiu sair às
ruas na Marcha com Deus pela Família da Dona Leonor Mendes de Barros, esposa do
autor de diversos grandes crimes praticados através da especulação imobiliária.
Vou te dar apenas um
exemplo do método utilizado por Ademar de Barros para o “progresso” de São
Paulo. No segundo ano de seu primeiro governo eleito (1948, mas antes já fora
interventor pela ditadura Vargas), aproveitando os poderes a ele conferidos
pela população apoiou o empreendimento da Companhia Imobiliária Morumby sobre o
arremate de espólio familiar em local que os primitivos habitantes da região
chamavam de Colina Verde, ou Morumbi.
Como bairro, o
loteamento planejado pelo mais afamado arquiteto e urbanista da época já nasceu
para a elite.
Mas e os operários para
construírem as casas da elite do Morumbi? Paus de arara, claro! A tal mão de
obra barata disponibilizada pelo impedimento da progressão econômica nordestina
iniciada por Delmiro Gouveia quando tornou Campina Grande, na Paraíba, a
segunda produtora têxtil do mundo. Na impossibilidade de sobreviverem onde
nasceram imposta por São Paulo, o jeito foi emigrar para onde São Paulo os
queira e lá estiveram na construção do Morumbi, do Ibirapuera, dos prédios
todos, do metrô, etc. Mas voltando aos do Morumbi, ali também, como sempre,
aquela “gente diferenciada” ofereceu o mesmo problema de sempre: onde se os
enfiar?
Nessa época a cidade
terminava ali ao final da Nove Julho onde o antigo rio Anhangabaú desaguava no
Pinheiros, exatamente na rua que já era famosa antes de sediar o primeiro
Shopping Center de São Paulo e segundo do Brasil depois do Derby de Recife do
século 19. Apesar de estreita e de paralelepípedos, a atual Faria Lima era uma via
importante ainda com o nome de Iguatemi porque ligava os bairros Itaim Bibi e
Pinheiros. Entre esses bairros populares, por volta de 1920 se estendera um bem
sucedido investimento imobiliário que vinha de lá do alto da Avenida Paulista.
Para falar desse
anterior empreendimento urbano de São Paulo temos de voltar às fortunas que os
coronéis latifundiários conquistaram ao longo de século 19 com o café e a
escravidão, constituindo-se numa elite econômica inconformada com o convívio à
“gente diferenciada” da época e da qual até hoje reclamam os remanescentes da
Higienópolis deste século 21. Veja você que tradicionais são nossos
conterrâneos!
Pois para isolar os
então chamados paulistas “quatrocentões” da “gente diferenciada” que se teve de
importar como mão de obra substituta da escravatura abolida pela Princesa
Isabel, em 1891 se constituiu o primeiro conjunto residencial afastado das
várzeas do Tamanduateí, Tietê e Anhangabaú aí documentados, no local onde então
se indicava por Prado de São Paulo. Mansardas compuseram a Avenida das Acácias
que mais tarde se batizou por Avenida Paulista. E nas décadas posteriores dali
se foi descendo em direção ao oeste da cidade, formando o Jardim Paulistano e o
Jardim América, para, enfim, se chegar ao Jardim Europa quando uma elite
industrial exigia mais espaços para seu isolamento em meio concentração
populacional consequente à espoliação e exploração fundiária que a própria
elite paulista promovia no resto do país.
Claro que nem só os
herdeiros da capitania hereditária de São Vicente enriqueceram com a escravidão
dos povos africanos. Desses vagabundos existiram por toda a parte e o
crescimento das elites brasileiras promoveu processos de ocupação em todos os
grandes centros e de formas similares, ainda que cada qual com suas
características próprias como no caso do Rio de Janeiro onde os trabalhadores
foram amontoados nos morros. Especificamente na cidade onde você e eu nascemos,
se optou pelas regiões de várzeas que, como contam aí no filme, primeiro foram
ocupadas pelas mesmas elites, mas, ao se darem conta dos problemas de cheias em
períodos de chuvas, a solução encontrada foi transferir barões, baronesa e
princesinhas do café para longe dos rios, nos altos da Paulista onde não
correriam o risco de molhar o pezinho a cada chuva.
Por ser uma colina,
Ademar de Barros encontrou no Morumbi mais uma área ideal para dar continuidade
a esse tipo de solução encontrada no século anterior pelo engenheiro Joaquim
Eugenio de Lima ao idealizar a que hoje é o grande centro financeiro paulista e
principal ponto de confronto entre homofóbicos e aqueles cuja existência
provocam suas convicções e incertezas sobre a própria opção sexual, pois embora
não concorde que a homossexualidade seja uma questão de opção, estes que se
incomodam com os comportamentos sexuais de outros, sim, me parecem que optaram
e não estão satisfeitos ou convictos com opção adotada. Me espanta São Paulo
concentrar este tipo de problema no país e mais saudáveis me parecem os
resolvidos de Pelotas e Campinas do que a indefinição desses enrustidos
paulistanos, mas isso é outro assunto que aqui não vem ao caso e o que me falta
responder é onde se enfiou aqueles paus de arara que construíram o Morumbi do
Ademar de Barros.
É aí que se demonstra a
esperteza deste governante apoiado pelo povo de nossa cidade (no meu caso, ex,
e não quero de volta) na primeira hora do golpe de 64. Tanta esperteza que até
os ditadores temeram a espertice e, apesar do apoio da classe média paulista
conquistado por ele e pela mulher, o cassaram. Uma traição e injustiça mais
tarde reparada pelos próprios paulistas ao manter por diversas eleições e mesmo
após a ditadura, um Ademar de Barros igualzinho senão pior e que a própria
ditadura arrumou para substituir o original: Paulo Salim Maluf. Tão igual que
para Maluf se transferiu o mesmo argumento com o qual a geração anterior
defendia Ademar: “rouba, mas faz!”.
E Ademar roubou e fez o
que já se vinha fazendo na tradicional Paulicéia, conforme tão bem contado
nesse vídeo: empurrou os pau de arara para a várzea do Rio Pinheiros, entre o
final do Jardim Europa na Iguatemi e o sopé da Colina Verde, ou Morumbi.
Aí se pensará: “Mas
coitados daqueles industriais e suas famílias que se encantaram com o
ajardinamento do Morumbi sem imaginar que para chegar e sair de lá, teriam de
atravessar um banhado, um rio e hordas de diferenciados”. Pois aí estava o pulo
do gato do Ademar que assim roubou rios de dinheiro público, parte do qual
escondeu no cofre da amante, mas o Lamarca acabou retomando e recentemente
puseram a culpa na atual Presidenta Dilma Rousseff, sem lhe concederem sequer a
centúria do perdão costumeiro aos que roubam de ladrões.
Pois o pulo do gato de
Ademar sobre a várzea do Pinheiros entre a Iguatemi e o Morumbi foi exatamente
o da desculpa de atendimento aos alagados, justificando verbas para a conclusão
da retificação do Rio Pinheiros, drenagem das várzeas e construção da Avenida
Cidade Jardim por onde escoaram os automóveis dos moradores do Morumbi que até
podiam ir fazer uma fezinha no Jockey Club e frequentar o Sport Club Germânia
que já na Segunda Guerra Mundial mudou para Esporte Clube Pinheiros, além do
Harmonia da Rua Canadá no Jardim América. Tudo isso sem o risco de se exporem à
“gente diferenciada”, os paus de arara que construíram suas casas e se
espalharam em barracos, favelas e casas pobres.
Se ainda não percebeu
porque nem Maluf nem Serra nem Kassab dão qualquer providência aos alagamentos
que anualmente aumentam em São Paulo, preste atenção, Lúcia, ao fato de que
Ademar não fez tudo isso apenas pelo bem estar da elite do Morumbi. A visão do
homem ia mais longe, pois para ele muito mais significativo dos que os ganhos
aferidos com a Companhia Imobiliária Morumby era a bolada negociada com a “City
of São Paulo Improvements and Freehold Land Company Limited”, ou simplesmente
Companhia City, fundada em 1912 por dois urbanistas ingleses que para cá vieram
exatamente para desenvolver outros núcleos urbanos para a progressista e
promissora elite paulista, como o Pacaembu.
Você há de desconfiar:
com um Brasil tão grande desse e cheio de riquezas por todo o território
nacional, porque esses europeus do século 20 cismavam logo com São Paulo que
nunca foi tão paradisíaca como muitas de outras brasílicas paragens? Se
continuar nessa cisma você acabará descobrindo porque o resto do Brasil sempre
foi tão pobre, mas não estamos aqui para discutir o desdobramento do modelo
capitalista pelos países do hemisfério sul e sim para entender porque sua
cidade se tornou uma das de pior qualidade de vida do mundo. Pois para isso é
preciso contar que Ademar de Barros contribuiu para a degradação da cidade onde
nascemos dessa forma: promovendo a formação de núcleos habitacionais
periféricos, antecedidos por bolsões de vazios onde temporariamente se
amontoava a “gente diferenciada”. Para levar serviços públicos aqueles núcleos
das elites, como o Morumbi, implantava custosas (pelas distâncias) extensões de
rede de distribuição de energia elétrica, de água potável, de coleta de esgoto,
construção de vias de tráfego, de coleta de lixo, correio, telefone, etc.
Lembre-se que esses serviços, sendo de primeira necessidade, eram realizados
por companhias estatais e com isso poderá imaginar quanto engordou o cofre da
amante com o tamanho do rombo nos cofres públicos.
Por isso existem a
Cidade Leonor, Cidade Adhemar, e outras obras deixadas para a posteridade da
miséria paulistana, construídas por aquela gestão. Em contrapartida, aqueles
paus de arara que então ocupavam os bolsões desvalorizados entre um ponto e
outro dos ocupados por quatrocentões ou novos ricos, também se beneficiavam na
rabeira destas extensões de serviços públicos e se tornavam votos garantidos à
cada eleição de Ademar e dos demais que seguiram sua estratégia, desde Jânio
Quadros e Salim Maluf até os atuais José Serra e Gilberto Kassab.
Aí você vai lembrar que
nesse entremeio de história também houve a Erundina e a Marta Suplicy. Não deu
certo, não Lúcia! Não deu certo porque justo lá nas vilas miséria de
Ademar&CIA, essas mulheres acharam de instalar benfeitorias tipo os CEUS,
tá lembrada? E se tem uma coisa que paulistano nenhum admite é isso de ficar
caprichando pra pobre, pois pobre tem mais é de ser pobre mesmo, não é não?
Mas estou me esquecendo
aqui da Companhia City dos urbanistas ingleses! Pois esse dois dos quais não
vou lembrar o nome agora, adquiriram uma área enorme às margens do Rio
Pinheiros. Um baixadão horrível que muito tempo antes se chamaram Freguesia da
Consolação e Chácara Bela Veneza. De bela não tinham nada e de Veneza só
aqueles canais alagados o tempo todo. Um péssimo negócio até que as tais
extensões de serviços públicos para a elite do Morumbi, transformou aquilo na
Cidade Jardim. Daí pra frente foi só expulsar os paus de arara e aproveitar a
meteórica valorização imobiliária de uma região já toda beneficiada pelos
recursos públicos, criando-se mais um núcleo habitacional de alto padrão e alto
custo de venda.
O que fazer com os pau
de arara que antes se pôs ali? Fácil! É só empurrar para mais longe, qualquer
nova periferia!
O incômodo é que agora
essa “gente diferenciada” assalta, estupra, mata, até mesmo dentro de Shopping
Center. E São Paulo acabou virando um inferno! Ninguém anda, o trânsito é uma
droga, lixo na rua, “diferenciados” pra todo canto e até em Higienópolis! Não
se têm mais sossego! E quando alaga, então? Tudo vira uma Veneza!
Aos paulistanos só
resta manter a tradição e continuar elegendo os Ademar de Barros do PSDB e do
DEM. E por a culpa nos pau de arara, nos nordestinos a que querem afogar.
É verdade que, conforme
se aferiu ainda este ano, hoje mais retornam para o nordeste do que vêm de lá
para São Paulo, mas alguém tem de se culpar pelas enchentes, pelo trânsito
caótico, pelos atropelamentos, pela menor rede de transporte subterrâneo urbano
(metrô) e um dos mais elevados índices de decibéis urbanos e violência do
mundo, pela baixa qualidade de vida do país, pela poluição, pela neurose e tudo
o mais que faz de São Paulo uma cidade tão amada por seus habitantes que em
cada eleição mantêm a tradição de eleger como dirigentes os piores
administradores e políticos do país, há mais de duas décadas mantidos no poder.
Santa Catarina e
Florianópolis vão pelo mesmo caminho para desespero das futuras gerações que
inocentemente nascerão nesses estados e capitais e certamente amaldiçoarão as
tradições políticas de seus pais e avós, mas como dizem os franceses: c’est la
vie! Não se pode fazer nada quanto a isso.
Ou se pode?
*Raul Longo é jornalista, escritor
e poeta. Mora em Florianópolis e é colaborador do “Quem tem medo da
democracia?”, onde mantém a coluna “Pouso
Longo”.
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