Muito talento e pouco
juízo
O poeta Torquato Neto é
dessas figuras, digamos, “diferentes”, exóticas mesmo, no que diz respeito a
comportamento. Mas com um talento imenso, indimensionável, genial, talvez
inigualável. Viveu pouco, muito pouco, pouquíssimo, apenas 28 anos. Morreu, todavia,
não em conseqüência de alguma doença incurável ou mesmo por causa de algum
acidente, desses que ceifam, volta e meia, jovens promissores, em plena flor da
idade. Optou por dar cabo da vida, cometendo suicídio, para pasmo e lamentação
de todos os que o conheciam e que lhe prognosticavam um futuro brilhante, em
que “o céu seria o limite”. Lembro-me quando a imprensa noticiou sua morte,
embora sem enfatizar a causa, já que o tipo de ato que perpetrou é uma espécie
de tabu nas redações.
Vamos por partes.
Torquato Pereira de Araujo Neto nasceu em Teresina, Piauí, em 9 de novembro de
1944. Completaria, portanto, no final do corrente ano, setenta anos de idade.
Completaria... mas... Além de poeta, foi jornalista, letrista de música
popular, ator e o escambau. Em termos de arte e de comunicação, fez um, pouco
de tudo. Foi, sobretudo, expoente da contracultura brasileira em fins dos anos
60 e início dos 70, em uma época muito dura para todos nós, por causa da
ditadura militar. Destacou-se em tudo o que fez. Na poesia, por exemplo, não se
limitou a compor, mas fez dessa arte estilo de vida. A esse propósito, escreveu:
“Escute, meu chapa, um poeta não se faz com versos. E o risco é estar sempre a
perigo, sem medo. É inventar o perigo e estar sempre recriando dificuldades
pelo menos maiores. É destruir a linguagem e explodir com ela. Quem não se
arrisca, não pode berrar”. E Torquato se arriscou. E muito...
Filho do defensor público
Hélio da Rocha Nunes e da professora primária de Teresina, Maria Salomé Nunes,
o genial (e genioso) adolescente mudou-se, aos 16 anos, para Salvador, onde fez
amizades que durariam pelo resto de sua (curta) vida. Estudou, por exemplo, no
Colégio Nossa Senhora da Vitória com Gilberto Gil, um dos seus parceiros
preferenciais na MPB. Estreitou relações com Caetano Veloso, Gal Costa e Maria
Bethânia, com os quais também trabalhou, além de atuar como assistente de
ninguém menos do que Glauber Rocha, no filme “Barravento”. Não tardou para que
Salvador se tornasse muito pequena para seu talento e suas ambições. Assim, aos
18 anos de idade, em 1962, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde viria a se
consagrar, a se decepcionar da arte, dos amigos e de tudo e a dar cabo da vida.
Na Cidade Maravilhosa,
sua intenção era a de cursar Jornalismo. Nunca chegou a se formar, mesmo tendo
trabalhado em grandes jornais cariocas, como Correio da Manhã, Jornal dos
Sports e Última Hora. Neste último, assinou uma coluna que ficou muito famosa,
intitulada “Geléia geral”, em que comentava de tudo o que se referisse a arte
de vanguarda, quer Literatura, quer cinema, música, artes plásticas e comportamento.
É considerado, com justiça, como um dos mentores do “Tropicalismo”, movimento
do qual escreveu uma espécie de “Breviário”. Como letrista, foi parceiro dos
maiores astros da MPB da época, em composições hoje consideradas como “clássicos”,
como Gilberto Gil, Caetano Veloso, Luís Melodia, Jards Macalé, João Bosco,
Sérgio Britto, Edu Lobo, Nonato Buzar, Geraldo Azevedo, Geraldo Vandré, Capinam
e Roberto Menescal, entre tantos outros. Cataloguei pelo menos 45 composições
de sua autoria de enorme sucesso.
Como um sujeito tão
criativo e aparentemente lúcido pôde ter a péssima idéia de dar cabo da vida?
Não creio que haja justificativas minimamente lógicas. É verdade que o ambiente
sombrio, diria “claustrofóbico” do País, naqueles “anos de chumbo”, muito
contribuiu para isso. Após a edição do famigerado AI5, por exemplo,
oportunidade em que seus amigos Gilberto Gil e Caetano Veloso chegaram a ser
exilados, Torquato decidiu “respirar” outros ares menos pestilentos. Viajou
pela Europa e Estados Unidos e chegou a residir, por pouco tempo, em Londres. Ao
regressar ao Rio, o ambiente não havia melhorado. Pelo contrário. Além disso, o
jovem poeta viu-se às voltas com o
alcoolismo, do qual não conseguiu se livrar. Rompeu muitas e antigas amizades,
por motivos banais e não raro sem causa alguma. Torquato Neto cometeu suicídio
um dia após completar 28 anos, ou seja, em 10 de novembro de 1972.
Fez a bobagem após
regressar de uma festa. Chegou tarde em casa, andando de mansinho para não
despertar a esposa e o filho Thiago, de dois anos. Dirigiu-se para o banheiro,
abriu o registro de gás do chuveiro e... partiu para o desconhecido. Deixou,
como todo suicida, um bilhete de despedida, nos seguintes termos: "FICO.
Não consigo acompanhar a marcha do progresso de minha mulher ou sou uma grande
múmia que só pensa em múmias mesmo vivas e lindas feito a minha mulher na sua
louca disparada para o progresso. Tenho saudades como os cariocas do tempo em
que eu me sentia e achava que era um guia de cegos. Depois começaram a ver e
enquanto me contorcia de dores o cacho de banana caía. De modo que FICO
sossegado por aqui mesmo enquanto dure. Ana é uma SANTA de véu e grinalda com
um palhaço empacotado ao lado. Não acredito em amor de múmias e é por isso que
eu FICO e vou ficando por causa de este amor. Pra mim chega! Vocês aí, peço o
favor de não sacudirem demais o Thiago. Ele pode acordar". A pessoa que Torquato não queria que “sacudissem
demais” era seu filho. Thiago de Araújo Nunes viria a se tornar piloto de uma
companhia aérea brasileira de grande prestígio. Não sei dizer se ainda continua
na ativa. Presumo que já tenha se aposentado.
A quem quiser conhecer
mais sobre a vida e a obra de Torquato Neto, recomendo que compre uma das tantas
biografias escritas a seu respeito. Há algumas muito boas e completas. Se me
pedissem, todavia, uma definição bastante sucinta sobre essa personalidade da
nossa contracultura, expoente e um dos criadores do Tropicalismo, eu diria, sem
fugir ao respeito, simplesmente: “Foi um gênio de talento incomensurável, mas
de pouco ou nenhum juízo”. Imagino o quanto mais ele poderia ter feito por
nossa arte e cultura se estivesse vivo e prestes a completar setenta anos de vida.
Mas...
Boa leitura.
O Edito
Acompanhe o Editor pelo twitter: @bondaczuk. .
Impressiona pessoas que vivem tanto em tão pouco tempo. Dão a impressão de que, devido ao fazer acelerado, cansam da vida por já terem vivido demais.
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