O que é científico
* Por
Rubem Alves
Era uma vez um jovem
que amava xadrez. Sua vocação era o xadrez. Jogar xadrez lhe dava grande
prazer. Queria passar a vida jogando xadrez. Nada mais lhe interessava. Só lia
livros de xadrez. Estudava as partidas dos grandes mestres. Só conversava sobre
xadrez. Quando era apresentado a uma pessoa sua primeira pergunta era: Você
joga xadrez? Se a pessoa dizia que não ele imediatamente se despedia. Tornou-se
um grande mestre. Mas o seu sonho era ser campeão.
Derrotar o computador.
Até mesmo quando andava jogava xadrez. Por vezes, aos pulos para frente. Outras
vezes, passinhos na diagonal. De vez em quando, dois pulos para frente e um
para o lado. As pessoas normais fugiam dele porque ele era um chato. Só falava
sobre xadrez. Nada sabia sobre as coisas do mundo como pombas, beijos e sambas.
Não conseguia ter namoradas porque seu único assunto era xadrez. Suas cartas de
amor só falavam de bispos, torres e roques. Na verdade ele não queria
namoradas.
Queria adversárias.
Essas coisas como jogo de damas, jogos de baralho, jogo de peteca, jogo de
namoro eram inexistentes no seu mundo. Inclusive, entrou para uma ordem
religiosa. Eu viajei ao lado dele, de avião, de São Paulo para Belo Horizonte.
Cabeça raspada.
Durante toda a viagem
rezou o terço. Não prestei atenção mas suspeito que as contas do seu terço eram
peões, cavalos e bispos. Sua metafísica era quadriculada. Deus é o rei. A
rainha é nossa senhora. O adversário são as hostes do inferno.
As pessoas normais
brincam com muitos jogos de linguagem: jogos de amor, jogos de poder, jogos de
saber, jogos de prazer. jogos de fazer, jogos de brincar. Porque a vida não é
uma coisa só. A vida é uma multidão de jogos acontecendo ao mesmo tempo, uns
colidindo com os outros, das colisões surgindo faiscas. Uma cabeça ligada com a
vida é um festival de jogos. E é isso que faz a inteligência. Mas o nosso
heroi, coitado, era cabeça de um jogo só. Jogava o tal jogo de maneira
fantástica. Especializou-se. Sabia tudo sobre o assunto. E, de fato, sabia tudo
sobre o mundo do xadrez. Mas o preço que pagou é que perdeu tudo sobre o mundo
da vida. Virou um computador ambulante, computador de um disquete só. Disquetes
são linguagens. O corpo humano, muito mais inteligente que os computadores, é
capaz de usar muitos disquetes ao mesmo tempo. Ele passa de um programa para
outro sem pedir licença e sem pensar. Simplesmente pula, alta.
Inteligência é isso: a
capacidade de pular de um programa para outro, de dançar muitas danças ao mesmo
tempo. O humor se nutre desses pulos. O riso aparece no momento preciso em que
a piada faz a inteligência pular de uma lógica para uma outra. Há a piada dos
dois velhinhos que foram ao gerontologista que, depois de examiná-los,
prescreveu uma dieta de comidas e remédios a ser seguida por duas semanas.
Passadas as duas semanas, voltaram. O resultado deixou o médico estupefato. A
velhinha estava linda: sorridente, saltitante, toda maquiada. O velhinho, um
caco, trêmulo, pernas bambas, dentadura frouxa, apoiado na mulher. Como
explicar isso, que uma mesma receita tivesse produzido resultados tão
diferentes? Depois de muito investigar o médico atinou com o acontecido.
"- Mas eu mandei o senhor comer avêia três vezes por dia e o senhor comeu
avéia três vezes por dia?" O riso aparece no jogo de ambiguidade entre avêia
e avéia. O nosso heroi nunca ria de piadas porque ele só conhecia a lógica do
xadrez, e o riso não está previsto no xadrez. A inteligência do nosso heroi não
sabia pular. Ela só marchava. Faz muitos anos, um filósofo chamado Herbert
Marcuse escreveu um livro ao qual deu o título de O homem unidimensional . O
homem unidimensional é o homem que se especializou numa única linguagem e vê o
mundo somente através dela. Para ele o mundo é só aquilo que as redes da sua
linguagem pegam. O resto é irreal.
A ciência é um jogo. Um
jogo com suas regras precisas. Como o xadrez. No jogo do xadrez não se admite o
uso das regras do jogo de damas. Nem do xadrez chinês. Ou truco. Uma vez
escolhido um jogo e suas regras, todos os demais são excluidos. As regras do
jogo da ciência definem uma linguagem. Elas definem, primeiro, as entidades que
existem dentro dele. As entidades do jogo de xadrez são um tabuleiro
quadriculado e as peças. As entidades que existem dentro do jogo lingüístico da
ciência são, segundo Carnap, "coisas-físicas", isso é, entidades que
podem ser ditas por meio de números. Esses são os objetos do léxico da ciência.
Mas a linguagem define também uma sintaxe, isso é, a forma como as suas
entidades se movem. Os movimentos das peças do xadrez são definidos com rigor.
E assim também são definidos os movimentos das coisas físicas do jogo da
ciência.
Kuhn, no seu livro
Estrutura das Revoluções Científicas, diz que os cientistas fazem ciência pelos
mesmos motivos que os jogadores de xadrez jogam xadrez: querem todos provar-se
"grandes mestres".
Para se atingir o nível
de "grande mestre" no xadrez ou na ciência é necessária uma dedicação
total. Conselho ao cientista que pretende ser "grande mestre":
lembre-se de que, enquanto você gasta tempo com literatura, poesia, namoro, em
conversas no bar DALI, há sempre um japonês trabalhando no laboratório noite
adentro . É possível que ele esteja pesquisando o mesmo problema que você. Se
ele publicar os resultados da pesquisa antes de você, ele, e não você, será o
"grande mestre."
O pretendente ao título
de "grande mestre" deve se dedicar de corpo e alma ao jogo da
ciência. O cientista que assim procede ficará com conhecimentos cada vez mais
refinados na sua área de especialização: ele conhecerá cada vez mais de cada
vez menos. Mas, à medida que o seu "software" de linguagem científica
se expande, os outros "softwares" vão se atrofiando. Por inatividade.
O cientista se transforma num "homem uni-dimensional": vista apurada
para explorar a sua caverna, denominada "área de especialização", mas
cego em relação a tudo o que não seja aquilo previsto pelo jogo da ciência. Sua
linguagem é extremamente eficaz para capturar objetos físicos. Totalmente
incapaz de capturar relações afetivas. Se não houvesse homens no mundo, se o
mundo fosse constituido apenas de objetos, então a linguagem da ciência seria
completa. Acontece que os seres humanos amam, riem, têm medo, esperanças,
sentem a beleza, apaixonam-se por ideais. Meteoros são objetos físicos. Podem
ser ditos com a linguagem da ciência. A ciência os estuda e examina a
possibilidade de que, eventualmente, um deles venha a colidir com a terra.
Dizem, inclusive, que
foi um evento assim que pôs fim aos dinossauros. A paixão dos homens pelos
ideais não é um objeto físico. Não pode ser dita com a linguagem da ciência. No
entanto, ela é um não-objeto que têm poder para se apossar dos homens que, por
causa dela se tornam heróis ou vilões, fazem guerra e fazem paz. Mas um projeto
de pesquisa sobre a paixão dos homens pelos idéias não é admissível na linguagem
da ciência. Não não seria aceito para ser publicado numa revista científica
indexada internacional. Não é científico.
A ciência é muito boa -
dentro dos seus precisos limites. Quando transformada na única linguagem para
se conhecer o mundo, entretanto, ela pode produzir dogmatismo, cegueira e,
eventualmente, emburrecimento.
* Escritor, teólogo e educador, membro da Academia Campinense de
Letras
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