O Nheengatu que dá barato
* Por
José Ribamar Bessa Freire
Tinha cara de bebê
chorão. Morava na Ilha do Governador, no Rio. Não lembro mais o nome dele.
Agnaldo ou Agnando, uma coisa assim, mas era conhecido como Pindá. Como
qualquer vendedor de drogas em porta de escola, percorria diariamente
universidades para abastecer a clientela, cujos vícios e gostos conhecia muito
bem. Na UERJ, se esgueirava pelos corredores, qual felino de mansa pisada. Ia
de sala em sala, levando a mercadoria. Silencioso e discreto, só abordava os
consumidores potenciais sem presença de testemunhas. Um belo dia, sumiu. Dizem
que foi preso.
Conheci-o há mais de
vinte anos. Quem nos apresentou, se não me engano, foi Gilberto, um professor
de engenharia, que era chegado na coisa e da qual era também dependente:
- Esse é Pindá, meu
fornecedor. Mercadoria garantida. Pode confiar.
- Pindá é anzol em
Nheengatu - eu disse, explicando que Nheengatu era uma língua de base tupi
falada em todo o Rio Negro, tão viva que se tornaria depois, em 2002, língua
cooficial no município de São Gabriel da Cachoeira (AM).
Bastou isso para que o
tráfico se fizesse carne e habitasse entre nós. Pindá, um profissional sério,
jogou o anzol e eu mordi a isca. Ele percebeu que eu, recém transferido do
Amazonas para o Rio, passava por crise aguda de abstinência causada por
suspensão brusca do uso do objeto do desejo. No dia seguinte, voltou, abriu sua
maletinha e deu o bote pingando três pontos de exclamação:
- Olha aqui! Pra você!
Coisa fina!
Ficou observando minha
reação. Vi a mercadoria armazenada dentro de uma caixa de papel confeccionada
sob medida, coberta por camada de pó branco e cristalino. Dava uma overdose.
A dopamina
- Quanto custa? - perguntei, tentando esconder
a ansiedade.
Mas ele percebeu o
aumento na frequência dos meus batimentos cardíacos. Era experiente no trato
com dependentes. Baseado - baseado mesmo - na vontade do consumidor de
experimentar sensações mais fortes, costumava oferecer doses cavalares do
produto, cada vez maiores. Deu o preço. Custava os olhos da cara somados ao
olho do pescoço em francês. Uma fortuna!
- Muito caro. Quase um
mês de salário. Tenho que pedir financiamento no banco - ironizei.
- É coisa rara. Tá todo
mundo querendo. A doutora Ruth Monserrat, lá do Fundão, já fez uma encomenda.
Aquele alemão, o Wolf Dietrich - conhece? - paga em euro ou em dólar. Não é
caro não.
Tentei desvalorizar a
mercadoria para baixar o preço:
- Tem até traça... - eu
disse, apontando o pó.
- Não é traça. A caixa
é de papel alcalino com cola anti-traça - ele disse. Parecia adivinhar que
naquele momento meus neurônios já liberavam noradrenalina e dopamina. Ele nos
entendia. Durante anos, nos consolou, fornecendo o que cada um de nós
precisava.
Soprei o pó, tirei o exemplar
da caixa e comecei a folhear com cuidado o Vocabulário da Língua Geral
Portuguez-Nheengatú e Nheengatú-Portuguez, 768 páginas, escrito por Ermano
Stradelli e editado em 1929, depois de sua morte, pelo Instituto Histórico e
Geográfico Brasileiro. A edição foi feita com material vagabundo, em papel
jornal, mas se trata de raridade bibliográfica, que contém um tesouro,
dificilmente encontrado nos sebos.
Disfarcei a emoção
desdenhando:
- É. Ainda bem que
tenho todo ele fotocopiado.
Mentira. Ele sabia que
não era possível fotocopiar sem esfarinhar o livro. Ele sabia que eu ia
comprar, eu sabia que ele sabia que eu sabia. O que se seguiu foi jogo de
dissimulação, fingimento, embromação, rasteiras, camuflagem. No final,
aconteceu o previsível: apesar de muito choro, mordi a isca do Pindá, comprei
pelo preço que ele pediu, afinal o dicionário era inacessível, pois nunca havia
sido reeditado.
Destino do Pindá
Agora foi. A Editora
Ateliê, de Cotia (SP), acaba de reeditar, em 2014, o dicionário de Stradelli, com
revisão de Geraldo Gerson de Souza, orelha escrita por José de Souza Martins
(USP) e apresentação de Gordon Brotherston e Lúcia Sá (Universidade de
Manchester) que chamam atenção para os usos que pode ter:
- É possível utilizar o
Vocabulário de Stradelli como um dicionário qualquer, procurando termos
específicos, concordando ou discordando das definições do autor, estudando a
morfologia e a fonética da língua. Isso não impede, todavia, que leitores
interessados na Amazônia e sua história percorram as páginas desse
impressionante trabalho na tentativa de ampliar seus conhecimentos sobre fauna,
flora, medicina, pesca, caça, agricultura, astronomia, história, política,
rituais e costumes, além de literatura e folclore indígena caboclo - tudo isso
a partir do nheengatu.
Relembrar a história do
Pindá foi a forma que encontrei para anunciar aqui o lançamento de obra tão
importante para a Amazônia e para o Brasil. Concluo com três notas: uma pequena
crítica sem qualquer demérito para a obra, uma informação sobre o destino de
Pindá e uma notícia sobre o nheengatu, que está sendo cada vez mais falado,
escrito e até cantado.
A crítica: a
bibliografia citada nesta reedição foi atualizada com outros trabalhos, mas não
há qualquer menção a muitos autores que pesquisaram o tema, entre os quais
Aryon Rodrigues, referência obrigatória quando se trata de línguas tupi, nem
qualquer indicação sobre a única história que se tem até hoje do nheengatu -
Rio Babel, a história da línguas da Amazônia (Eduerj 2004 1ª edição e 2011 2ª
edição) de autoria de um cliente chorão e meio cabotino do Pindá.
O destino de Pindá: foi
preso não por vender obras raras por preços exorbitantes, com estratégia de
comercialização dos vendedores de droga, que atraem a presa, seduzem e
manipulam a dependência. Foi preso por não pagar pensão alimentícia. Sumiu do
mapa, levando com ele as fichas dos professores da UERJ que mantinha mais
atualizadas do que aquelas que figuram na Plataforma Lattes.
A notícia: no facebook
tem um grupo Nheengatu on line, com quase cem membros, onde diariamente se
escreve e se troca informações nesta língua. Foi lá que os usuários tomaram
conhecimento do dicionário de Stradelli, lançado no momento em que a banda dos
Titãs apresenta Nheengatu, seu novo álbum com capa reproduzindo pintura do
século XVI - Torre de Babel - de Pieter Bruegel.
No entanto, é uma pena
que na divulgação do novo CD se reproduza um erro histórico com a afirmação de
que o nheengatu é uma "língua artificial criada pelos jesuítas no
Brasil". Nem é artificial, nem foi criada pelos jesuítas, cuja
contribuição consistiu em dotar com uma ortografia uma língua que já existia -
e que foi se modificando com o uso como qualquer língua - possibilitando sua
divulgação escrita na catequese e sua expansão pelos rios da Amazônia.
De qualquer forma, o
esforço dos Titãs por recuperar as raízes históricas do Brasil confirma que o
Nheengatu falado, escrito ou cantado até na França ainda pode dar o maior
barato, como queria o saudoso Pindá.
P.S1.Stradelli, E.
Vocabulário Português-Nheengatu, Nheengatu-Português. Cotia, SP. Ateliê
Editorial. 2014. 536 pgs
P.S.2 - Nheengatu on
line
https://www.facebook.com/groups/nheengatuufscarsorocaba/?fref=ts
* Jornalista
e historiador
Nenhum comentário:
Postar um comentário