O exercício da crônica
* Por
Vinicius de Moraes
Escrever prosa é uma
arte ingrata. Eu digo prosa fiada, como faz um cronista; não a prosa de um
ficcionista, na qual este é levado meio a tapas pelas personagens e situações
que, azar dele, criou porque quis. Com um prosador do cotidiano, a coisa fia
mais fino. Senta-se ele diante de sua máquina, acende um cigarro, olha através
da janela e busca fundo em sua imaginação um fato qualquer, de preferência
colhido no noticiário matutino, ou da véspera, em que, com as suas artimanhas
peculiares, possa injetar um sangue novo. Se nada houver, resta-lhe o recurso
de olhar em torno e esperar que, através de um processo associativo, surja-lhe
de repente a crônica, provinda dos fatos e feitos de sua vida emocionalmente
despertados pela concentração. Ou então, em última instância, recorrer ao
assunto da falta de assunto, já bastante gasto, mas do qual, no ato de
escrever, pode surgir o inesperado.
Alguns fazem-no de
maneira simples e direta, sem caprichar demais no estilo, mas enfeitando-o aqui
e ali desses pequenos achados que são a sua marca registrada e constituem um
tópico infalível nas conversas do alheio naquela noite. Outros, de modo lento e
elaborado, que o leitor deixa para mais tarde como um convite ao sono: a estes
se lê como quem mastiga com prazer grandes bolas de chicletes. Outros, ainda, e
constituem a maioria, "tacam peito" na máquina e cumprem o dever
cotidiano da crônica com uma espécie de desespero, numa atitude
ou-vai-ou-racha. Há os eufóricos, cuja prosa procura sempre infundir vida e
alegria em seus leitores e há os tristes, que escrevem com o fito exclusivo de
desanimar o gentio não só quanto à vida, como quanto à condição humana e às
razões de viver. Há também os modestos, que ocultam cuidadosamente a própria
personalidade atrás do que dizem e, em contrapartida, os vaidosos, que castigam
no pronome na primeira pessoa e colocam-se geralmente como a personagem
principal de todas as situações. Como se diz que é preciso um pouco de tudo
para fazer um mundo, todos estes "marginais da imprensa", por assim dizer,
têm o seu papel a cumprir. Uns afagam vaidades, outros, as espicaçam; este é
lido por puro deleite, aquele por puro vício. Mas uma coisa é certa: o público
não dispensa a crônica, e o cronista afirma-se cada vez mais como o cafezinho
quente seguido de um bom cigarro, que tanto prazer dão depois que se come.
Coloque-se porém o
leitor, o ingrato leitor, no papel do cronista. Dias há em que, positivamente,
a crônica "não baixa". O cronista levanta-se, senta-se, lava as mãos,
levanta-se de novo, chega à janela, dá uma telefonada a um amigo, põe um disco
na vitrola, relê crônicas passadas em busca de inspiração - e nada. Ele sabe
que o tempo está correndo, que a sua página tem uma hora certa para fechar, que
os linotipistas o estão esperando com impaciência, que o diretor do jornal está
provavelmente coçando a cabeça e dizendo a seus auxiliares: "É... não há
nada a fazer com Fulano..." Aí então é que, se ele é cronista mesmo, ele
se pega pela gola e diz: "Vamos, escreve, ó mascarado! Escreve uma crônica
sobre esta cadeira que está aí em tua frente! E que ela seja bem-feita e
divirta os leitores!" E o negócio sai de qualquer maneira.
O ideal para um
cronista é ter sempre uma os duas crônicas adiantadas. Mas eu conheço muito
poucos que o façam. Alguns tentam, quando começam, no afã de dar uma boa
impressão ao diretor e ao secretário do jornal. Mas se ele é um verdadeiro
cronista, um cronista que se preza, ao fim de duas semanas estará gastando a
metade do seu ordenado em mandar sua crônica de táxi - e a verdade é que, em
sua inocente maldade, tem um certo prazer em imaginar o suspiro de alívio e a
correria que ela causa, quando, tal uma filha desaparecida, chega de volta à
casa paterna.
* Poeta, diplomata, escritor
e um dos mais consagrados compositores da MPB.
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