O “entendido”, salvo pelo ridículo (1)
* Por
Nelson Rodrigues
Por que o Brasil não
gosta do Brasil e por que nos falta um mínimo de autoestima? É a pergunta que
me faço, sem lhe achar a resposta. Dirão vocês que exagero e que não é tanto
assim, que diabo. Responderei que é tanto assim ou pior. Vocês se lembram da
Passeata dos Cem Mil, a famosíssima Passeata dos Cem Mil?
Os meus leitores, se é
que os tenho, já repararam que eu a cito muito. Posso dizer que é uma das
minhas referências mais obsessivas. E por quê? Quem quiser entender as nossas
elites e o seu fracasso encontrará nos Cem Mil um dado essencial. Não havia,
ali, um único e escasso preto. E nem operário, nem favelado, e nem torcedor do
Flamengo, e nem barnabé, e nem pé-rapado, nem cabeça de bagre. Eram os filhos da
grande burguesia, os pais da grande burguesia, as mães da grande burguesia.
Portanto, as elites.
E sabem por que e para
que se reunia tanta gente? Para não falar no Brasil, em hipótese nenhuma. O
Brasil foi o nome e foi o assunto riscado. Falou-se em China, falou-se em
Rússia, ou em Cuba, ou no Vietnã. Mas não houve uma palavra, nem por acaso, nem
por distração, sobre o Brasil. Picharam o nosso Municipal com um nome único: —
Cuba. Do Brasil, nada? Nada.
As elites passavam
gritando: — “Vietnã, Vietnã, Vietnã!” E, quanto ao Brasil, os Cem Mil faziam um
silêncio ensurdecedor. Tanto vociferaram o nome de Vietnã, de Cuba e China que
minha vontade foi replicar-lhes: — “Rua do Ouvidor, rua do Ouvidor, rua do
Ouvidor!” Simplesmente, o Brasil não existe para as nossas elites. Foi essa a
única verdade que trouxe, em seu ventre, a Passeata dos Cem Mil.
Estou apresentando um
exemplo e poderia citar muitos outros. Vamos ficar por aqui. Há um momento,
todavia, em que todos se lembram do Brasil, em que noventa milhões de
brasileiros descobrem o Brasil. Aí está o milagre do escrete. Fora as
esquerdas, que acham o futebol o ópio do povo, fora as esquerdas, dizia eu,
todos os outros brasileiros se juntam em torno da seleção. É, então, um
pretexto, uma razão de autoestima. E cada vitória compensa o povo de velhas
frustrações, jamais cicatrizadas.
Não sei se contei o
caso de certo amigo meu. É o que se chama um boa-vida. Sua mesa tem vinhos
raros e translúcidos. Um dia, ocorreu-lhe um capricho voluptuoso, e tomou um
banho de leite de cabra. Perguntei-lhe: — “Que tal?” Respondeu: — “Assim,
assim.” Duas vezes por ano, dá uma volta pela Europa. Pois bem. É esse amigo
que me confessa: — “Só me sinto brasileiro quando o escrete ganha.” Fora disso,
passa anos sem se lembrar do Pão de Açúcar ou sem pensar na Vista Chinesa,
recanto ideal para matar turista argentino.
Domingo ele bateu o
telefone para mim. No seu desvario, berrava: — “Ganhamos da Inglaterra!” (2)
Chorava: — “Como é bom ser brasileiro!” E, durante toda a Copa, será um
brasileiro de esporas e penacho. Também a grã-fina das narinas de cadáver me
ligou. Soluçava: — “Brasil! Brasil! Brasil!” Mais tarde, eu a vi, patética,
enrolada na bandeira brasileira. Parecia uma Joana d’Arc da seleção.
O meu assunto de hoje
é, justamente, o escrete que está maravilhando o mundo. Tem sua história, tem a
sua lenda. Antes de mais nada, não pensem que se improvisa um escrete da noite
para o dia. Não. É todo um secreto, um misterioso, um profundo trabalho de
gerações. Até que, um dia, há o milagre: — juntam-se, então, no mesmo time, um
Pelé e um Gérson, um Rivellino, um Jairzinho.
Vocês viram o nosso gol
contra a Inglaterra. Foi uma obra-prima. Começou em Tostão, que passou a Paulo
Cézar. Paulo Cézar novamente a Tostão. Este trabalha a bola. A área inglesa era
uma ferocíssima selva de botinadas. Cada milímetro estava ocupado. Tostão
dribla um inglês, e mais outro inglês, um terceiro inglês. E vinham outros, e
mais outros e outros mais. Tostão vira-se e entrega a Pelé. Três adversários
envolvem o sublime crioulo. Este, rápido, empurra para Jairzinho, enganando
todo mundo.
Era um gol que não
podia ser feito porque a muralha de cabeças estava lá, inultrapassável. Mas
tudo teve a solução fulminante do talento. A bola deslizou para Jairzinho. No
seu banco, [Alf] Ramsey, o técnico inglês, parecia certo de que seus jogadores
iam frustrar o ímpeto e o virtuosismo dos nossos.
Não sei se vocês sabem,
mas esse Ramsey é um caso de imodéstia delirante. Declarara à imprensa
internacional: — “A Inglaterra vai ganhar, porque o Brasil não tem defesa.
Félix, Brito e Piazza são horrorosos.” Vejam a polidez, a cerimônia, a
reverência desse cavalheiro. Os rapazes da imprensa perguntaram: — “E Pelé?”
Achou graça: — “Ora, Pelé.” E disse que tinha meios e modos de apagar o Rei. O
que Ramsey queria dizer, por outras palavras, é que os brasileiros não são de
nada.
Volto ao passe de Pelé.
A bola está no pé de Jairzinho. Esquecia-me de contar uma outra do mesmo
Ramsey. Ele também declarou que os negros brasileiros rebolam muito. Não disse
rebolam, mas ponham aí uma palavra equivalente. Pois bem: — eis o fato: —
Jairzinho arranca. A bola sabe quando vai ser gol e se ajeita para o gol. E
Jairzinho, que era a maior saúde em campo, ainda ultrapassou um inglês; e encheu
o pé. Era o gol de uma das mais belas, mais perfeitas, irretocáveis vitórias
brasileiras de todos os tempos.
O próprio Ramsey,
apesar de sua máscara de ferro, dizia depois do jogo que, na altura do gol
brasileiro, a defesa inglesa estava entregue às baratas. O certo, o lógico é
que, depois do gol, as coisas acontecessem numa progressão fulminante de
catástrofe. Mas diz o Ramsey: — “Os brasileiros recuaram para defender o 1 x 0.
O que seria de nós se eles não recuassem?”
Mas não tem sido fácil
a vida do escrete. Por exemplo: — Paulo Cézar sofreu uma experiência inédita: —
uma vaia de noventa minutos. Isso corresponde a um linchamento. Só não entendo,
até hoje, como ele conseguiu sobreviver. Nem se pense que foi ele o único. Mas
não vamos amaldiçoar as vaias ao escrete. Elas o fizeram, elas o virilizaram. A
jornada brasileira no México é uma vingança contra as vaias.
E o que a seleção e,
antes da seleção, o que sofreu o futebol brasileiro nas mãos dos “entendidos”.
Tenho que abrir, neste momento, um tópico especial. O que é o “entendido”?
Veremos se posso caracterizá-lo. É o cronista que esteve, em 66, na Inglaterra,
e voltou com a seguinte descoberta: — o futebol europeu em geral e o inglês em
particular eram muito melhores do que o nosso. Estávamos atrasados de quarenta
anos para mais. Quanto à velocidade, era uma invenção europeia. Os brasileiros
andavam de velocípede e os europeus, a jato. O “entendido” afirmava mais: — os
times de lá não deixavam jogar. Essa foi genial. Imaginem vocês um time jogando
e o adversário assistindo, como numa frisa de teatro. Por outro lado, o preparo
físico dos europeus era esmagador. Como se não bastasse tudo o mais, ainda
descobriu o “entendido”: — o futebol moderno não é bonito, não quer ser bonito
e escorraçou o belo e artístico de suas cogitações. Bonito e artístico é o
futebol subdesenvolvido de Brasil e outros.
O jogo Brasil x Inglaterra
desmontou vários mitos. A tal velocidade não existe. Os ingleses tinham
períodos enormes em que preferiam o velocípede ao jato. A saúde de vaca
premiada é a nossa e não a deles. Não há no time adversário um jogador com a
furiosa plenitude de um Jairzinho ou de um Pelé. Uma mentira a história de que
os europeus não deixam jogar. E como não deixam, se Tostão comeu três, Pelé
enganou mais três e Jairzinho ultrapassou mais um antes de fazer o gol? O pau
de arara de ouro, Clodoaldo, corre mais do que todo o escrete inglês junto. E
vem o “entendido” e declara, solene, enfático, hierático: — “Nós não somos os
melhores.” Pois os lorpas, os pascácios acreditam. Basta Brasil x
Tchecoslováquia ou Brasil x Inglaterra que tudo não passa de uma impostura
inédita. Vou concluir: — o “entendido” só não se torna abominável porque o
ridículo o salva.
O Globo, 10/6/1970
(1) Título sugerido
pela edição do livro À sombra das chuteiras imortais (Companhia das Letras,
1993). A crônica foi publicada originalmente na coluna “As confissões de Nelson
Rodrigues” com o título “O grande inimigo do escrete: o ‘entendido’”. (N.E.)
(2) Brasil 1 x 0
Inglaterra, 7/6/1970, em Guadalajara. Segundo jogo da primeira fase da Copa do
México. (N.E.)
Jornalista,
teatrólogo e escritor pernambucano
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