Os rolezinhos causam vertigem na mídia
* Por
José Isaías Venera
Milan Kundera, em A
insustentável leveza do ser, talvez tenha sido quem melhor descreveu a sensação
de vertigem como uma realidade social, ainda nos anos 1980, quando o debate
sobre pós-modernidade mal tinha iniciado. “O que é vertigem? Medo de cair? Mas
por que temos vertigem num mirante cercado por uma balaustrada sólida? Vertigem
não é o medo de cair, é outra coisa. É a voz do vazio debaixo de nós, que nos
atrai e nos envolve, é o desejo da queda do qual nos defendemos terrorizados.”
Se, para o conterrâneo
de Kafka, a experiência comunista na República Tcheca o fez perceber tanto
quanto Marx – “que tudo que é sólido se desmancha no ar” –, os nossos
acontecimentos recentes, desde os protestos de junho de 2013 aos rolezinhos,
mostram mais ainda que a dinâmica capitalista nunca conseguiu de fato manter os
territórios demarcados, divididos; parece que a corte invisível da democracia
perde controle. Não porque os rolezinhos sejam algo novo, muito pelo contrário,
são mais comuns que se possa supor, mas há uma vertigem social que os fez virar
notícia, ou seja, é claramente um acontecimento midiático, cujo preconceito de
classe e racial apenas aflorou.
A grande mídia ainda se
esforça, aterrorizada, para combater a perda de poder na esfera pública. Qual a
imagem que mais vimos nos protestos de junho do ano passado ou nos rolezinhos?
Não seriam imagens para reforçar o sentido de vandalismo e ódio? O comentarista
do Jornal da Globo Arnaldo Jabor declarou no dia 12 de junho, seis dias após o
primeiro protesto organizado pelo Movimento Passe Livro (MPL), nas escadarias
do Teatro Municipal da capital paulistana, que só se viu tanto ódio “quando a
organização criminosa de São Paulo queimou dezena de ônibus”.
Sociedade de consumo
A mídia conservadora
vive aterrorizada em perder o que nunca foi dela ou o que supostamente possa
perder. É evidente que, quando se trata de concessões públicas, como no rádio e
na TV, a lógica é facilmente aceita, mas se deve pensar em todos os casos, já
que o fortalecimento das mídias digitais e, sobretudo, de outros grupos podem
representar queda. Voltemos à literatura de Kundera: “Aquele que deseja
continuamente ‘elevar-se’ deve esperar um dia pela vertigem” – lembremos da
“queda” de Diogo Mainardi em debate ao vivo com Luíza Helena Trajano no
programa Manhattan Conection, da GloboNews.
Uma frase sobre uma
imagem que circula nas redes sociais é um bom exemplo: “Toda vez que o
capitalismo se sente ameaçado, ele solta o fascismo para passear.” Ora, usam-se
os mesmos métodos fascistas, o de não permitir a existência de outra forma de
pensamento, de ordenamento das coisas etc.; e o que parece ser seu oposto – o
fascismo, o nazismo e o comunismo – são apenas ferramentas do próprio
capitalismo para implantar o terror social.
Quem acredita hoje na
hipótese da revolução? Ao contrário, o medo não é oriundo da lógica dicotômica
falsamente levantada por seguimentos conservadores da sociedade. O medo é
justamente da “revolta” pelo direito de participar dos “encantos” do próprio
capitalismo. Ele não advém do “diabo vermelho”, como explorava a literatura
anticomunista. A revolta (o movimento de subverter o lugar que discursivamente
foi atribuído aos moradores de periferias) parece ser dos não consumidores que
querem integrar-se à sociedade de consumo, nem que seja somente para tirar
fotos nos lugares bacanas. E não há símbolo maior do que o shopping.
“A turma da algazarra”
A psicanalista Maria
Rita Kehl interpretou bem esse fenômeno, em declaração à Folha de S.Paulo
(17/01): “Toda inclusão econômica exige, em um segundo momento, o
reconhecimento da pertença a uma nova classe social. É claro que os jovens da
periferia não pertencem a essa classe que compra nos shoppings, mas chegaram mais
perto dela.” É o mesmo que dizer que o shopping já faz parte do horizonte
desses jovens de periferia, mas a conquista, enquanto se sentir pertencente
desse espaço, só será possível no embate. Pertencimento é alteridade.
Por outro lado, a
reação raivosa do colunista da Veja Reinaldo Azevedo em seu blog (19/01) contra
Maria Rita, tentando desqualificar seu discurso por ser, como ele mesmo
afirmou, “petista militante”, expressa muito a tese de que a comunicação é,
quase sempre, motivada por sintomas. É evidente que jovens da periferia fazem
também suas prestações nos shoppings, mas na medida em que o poder aquisitivo
melhora ou que simplesmente passam a desejar mais esses espaços (e não é
qualquer shopping), a barreira silenciosa do preconceito, dos lugares subjetivamente
demarcados, precisa ser enfrentada e superada. Enquanto Maria Rita manifestou
sua opinião em um parágrafo, Azevedo discorre longamente sua artilharia
conservadora no que de fato é o problema para este segmento da sociedade – o
PT.
Os rolezinhos não
poderiam ser pensados como uma subversão pós-moderna do “Trabalhadores de todo
o mundo, uni-vos!”, para o “Jovens de todo o país, ocupemos os shoppings para
gozar com a sociedade de consumo”. Agora são os jovens que se unem a partir das
redes sociais da internet para dar um rolê no shopping, “ouvir funk ostentação”
e, se possível, “comer no McDonalds e ir ao cinema”, como foram descritos na
reportagem de capa da Época (20/01). O problema é que para a revista eles são
apenas “a turma da algazarra”, como estampa a manchete de capa. Esse é apenas
um dos sentidos rotulados pela grande mídia.
Os rolezinhos são
politizados
Não estaríamos diante
de um novo movimento oriunda das massas virtuais, que se configura no próprio
movimento, cujo sintoma dá-se justamente na relação social com esse novo; por
isso que no campo da comunicação pode-se trabalhar com a noção de que a
narrativa cria o acontecimento.
O filósofo Paulo
Girardelli fez também uma boa observação publicada (15/01) em sua página na
internet: “As classes médias se retiram do lugar se ele pega a fama,
correspondente ou não ao que ocorre, de ‘lugar de pobre e preto’. É pior que a
fama de ‘lugar de puta’ ou ‘lugar de nóia’”. Há, sim, assepsia social.
Mas, talvez, o melhor
depoimento tenha vindo de quem vivencia os rolezinhos. Fábio Goulart, um dos
organizadores dos rolezinhos de Porto Alegre, fez um longo comentário após
artigo de Juremir Machado da Silva, publicado no dia 19/01 no Correio do Povo,
intitulado “Em defesa dos rolezinhos”. No comentário, Fábio diz: “Os rolezinhos
nada mais são do que passeios… Jovens da periferia querendo passear, curtir,
zoar, conhecer gente nova, beijar… e todas estas outras coisas que a velha
classe média vai fazer normalmente no shopping. O simples alvoroço que se criou
em torno dos rolezinhos já prova a questão do preconceito que tanto se fala.
Quando vai um grupo de 300 jovens da velha classe média fazer um barulhento
flash mob no shopping ninguém fala nada, quando vão 300 ‘bixos’ da universidade
federal badernar ninguém fala nada… por isso digo que os rolezinhos são
politizados”.
O inconsciente político
Consideremos a tese
freudiana de que o desejo é demanda do inconsciente. Poderíamos então defender
que a mudança está no âmago da existência, já que a consciência (o que poderia
ser substituído pela cultura) é justamente o espaço da fantasia que busca
tampar a outra cena (inconsciente) que causa vertigem.
Uma manchete do jornal
Cruzeiro do Sul (18/01), de Sorocaba, SP, expressa bem a relação sintoma e
fantasia do nosso tempo: “Shoppings conseguem liminar contra rolezinhos”. Ao
ler a matéria, percebe-se que não houve nenhum incidente nos shoppings da
cidade que pudesse motivar a ação. Engano. Esses não são espaços públicos. É
uma espécie de faz de conta de que é público. É como a brincadeira com carretel
do neto de Freud, que era o fio de ligação com sua mãe. Na ausência materna,
Ernst jogava o carretel para fora do berço (saindo do seu campo de visão) e, em
seguida, puxava-o alegremente de volta para si. Assim, a criança suporta a
ausência da mãe imaginando, tal qual percebe no carretel, que ela voltará. Esse
jogo de faz de conta integra o outro lado da fantasia da nossa realidade, já
que a primeira é a possibilidade de perda do que se acredita ter. No fim, não há
nem mãe e nem objeto para se perder, mas somente fantasia.
O problema é entender
por que a fantasia dos jovens da periferia passou a incomodar a fantasia de
parte dos estabelecidos da sociedade. A operação é semelhante à demanda que vem
do inconsciente: há outra cena oculta no discurso pragmático da mídia que
motiva a formação do acontecimento – do rolezinho como um sintoma. Assim, se o
rolezinho é um acontecimento midiático, há uma outra cena (supõe-se política)
aterrorizando a mídia conservadora e causando vertigem na comunicação. Nesse
ponto, chegamos praticamente ao inconsciente político defendido por Deleuze e
Guattari, ou seja, ao invés de entendê-lo como representação (teatro) de
conteúdos inconscientes, ele é produção, é usina; ele é fabricado. Aqui, o
inconsciente sai da célula familiar, edipiana. É por isso que a deontologia, na
comunicação, é, literalmente, uma fantasia produzida, já que o sentido que se
atribui aos fatos é motivado por outra cena.
Dependente de consumo
Alimentamos a fantasia
de que podemos passear, olhar vitrines e depois sair do shopping sem consumir.
Tem limite. Quando isso acontecer de forma demasiada, os não consumidores são
excluídos. Para legalizar a prática, usa-se o efeito pinça, que é justamente
pegar alguns casos isolados e generalizar. Lembremos os velhos ditados que
embalam o censo comum liberal: “quem é trabalhador se dá bem na vida” (ora,
quem não tem sucesso é “culpa” – com toda carga cristã que carrega essa palavra
– dele mesmo); ou mesmo conteúdos bíblicos, entre eles: “nunca vi o justo
desamparado nem seus filhos mendigando o pão”. São ditados que funcionam para
imobilizar os cidadãos, deslocando problemas sociais para recair sobre
indivíduos que não tiveram bom desempenho econômico ou na “fé”.
Por outro lado, o
capitalismo parece chegar no seu estágio máximo, o de que as pessoas se sentem
cidadãs consumindo. O debate é antigo. O próprio sujeito é tornado objeto,
nesse caso objeto de consumo, na medida em que as relações (que são sempre
sociais) são eclipsadas (fetichizadas) pela ação individual com as mercadorias.
Assim, se o sujeito passa a ser dependente de consumo para constituir-se
enquanto tal (ser aceito pelo outro), deixá-lo em abstinência pode custar caro
à sociedade.
No fim, é como
interrogou o narrador da obra de Kundera: “O mais nobre dos dramas e o mais
trivial dos acontecimentos estariam assim tão próximos? É claro que sim.”
* José Isaías Venera é
jornalista e professor, Joinville, SC
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