Tempo perdido
* Por Rodrigo
Ramazzini
Quando o vizinho do Romerito apareceu na
rua pilotando uma Kawasaki Ninja, ele que espiava pela janela escondendo-se
atrás da cortina, prontamente, teceu o comentário para a esposa:
- Olha lá o Júlio se aparecendo de moto
nova. É um palhaço mesmo! Aposto que gastou um dinheirão naquilo... Onde já se
viu gastar um monte de dinheiro numa moto, né? Tem gente que não tem nada na
cabeça mesmo...
A esposa retrucou com azedume:
- Foi com o teu dinheiro que ele
comprou? Não, né? Então, fica na tua!
O conselho da esposa não foi seguido por
Romerito, que ao avistar a vizinhança admirando a moto de Júlio, que fazia
apenas dois meses que se mudara para o bairro, resolveu se juntar ao grupo. Lá
chegando, aproximou-se da roda de pessoas que contornava a motocicleta e logo
lascou:
- Bonita moto, Júlio! Porém, aposto que
pagou um carro forte de dinheiro por ela, não?
- Ela é bonita mesmo, Seu Romerito!
Barata realmente não foi... Mas, era um sonho de consumo que eu tinha... E
realizar um sonho não tem preço!
- Imagino... É que eu fico pensando
quantas coisas melhores se podia comprar com esse dinheiro, não?
- O senhor até parece um pai dando
sermão, Seu Romerito! Até podia mesmo... Mas, eu escolhi comprar uma moto...
- Eu acho que rasgaste dinheiro!
- Eu já acho que fiz um baita
investimento!
- Quanto ficares velho, certamente, este
dinheiro te fará falta...
- Pode ser que sim, Seu Romerito! No
entanto, tenho certeza que chegarei à velhice muito mais feliz por ter
realizado os meus sonhos quando novo... Diferente de certas pessoas...
- Isso nós veremos! Veremos!
- O senhor quando era novo conseguistes
comprar tudo que sonhara?
- Isso não vem ao caso agora...
- Pelo jeito não... Está com inveja de
mim, Seu Romerito?
- Ficastes maluco, Júlio? Por que eu teria
inveja de ti, hein? Só porque comprastes uma moto? Estás maluco! Isso sim...
- Eu acho que no fundo, quando jovem, o
senhor era louco para ter uma dessas e não conseguiu comprar... E agora projeta
esta frustração em mim ao avaliar a minha compra. É isso?
- Era só o que me faltava! Depois de
velho ter que ouvir isso...
- Eu pego o capacete ali e damos uma
voltinha. Assim o senhor ameniza essa frustração. Queres? Há! Há! Há!
- Não! Muito obrigado. Não respeitam
mais os mais velhos mesmo! Eu me vou embora para casa...
- Se trocares de ideia é só avisar, viu?
O convite está em pé. Há! Há! Há!
- Tu vais é te matar com essa moto, Júlio!
Isso sim! Olha que estou te avisando...
Nos dias que se sucederam a distração de
Romerito foi espalhar pela vizinhança a sua opinião sobre a aquisição de Júlio
e os riscos à vida que uma moto representava.
- É um absurdo gastar um dinheiro destes
numa moto! Sem falar que tu podes te matar a qualquer hora com este trânsito
maluco de hoje em dia. Olha... É muito ser cabeça de vento!
A profecia de Romerito aconteceu nove
dias depois. Júlio se envolveu em um acidente, chocando-se com a moto frontalmente
em um carro, numa movimentada avenida da cidade. Entrou em coma e perdeu muito
sangue, o que gerou uma mobilização da vizinhança de Júlio para a doação com o
objetivo de repor o estoque do hospital. Até Romerito, mesmo que a contragosto,
foi participar da campanha, entretanto, não deixou de se pronunciar sobre o
acidente:
- Eu falei que isso iria acontecer! Eu
falei...
O grupo de vizinhos aproveitou o dia da
doação de sangue para visitar Júlio no hospital. Ele era órfão de mãe e os
parentes mais próximos moravam em uma cidade distante a cerca de 500 km. E, foi
justamente quando a vizinhança fazia a visitação que apareceu uma tia de Júlio,
depois de viajar longas horas de ônibus. Ela chamava-se Glória. Cumprimentou o
grupo e fixou o olhar por alguns instantes nos olhos azuis de Romerito, mas não
teceu nenhum comentário naquele momento.
Encerrado o horário de visita e a
consulta aos médicos sobre o estado de Júlio, o grupo saía pelos corredores do
hospital quando Glória chamou Romerito pelo nome. “Como ela sabe o meu nome?”,
perguntou-se.
- Tu és o Romerito, né?
- Sim! Como sabes?
- Podemos conversar um pouco? Eu te
explico...
- Desde que não demore muito...
- Começarás a ver o tempo de outra forma
depois da nossa conversa...
- Vamos ali tomar um café...
Na cafeteria.
- Tu continuas com o mesmo olhar da
juventude, Romerito?
- Não estou entendendo. De onde me
conheces?
- Não estás lembrado de mim? Eu sou
Glória. Tia do Júlio e irmã da Angélica...
Quando o nome Angélica soou no ouvido de
Romerito, um mar de lembranças emergiu em seus pensamentos. Angélica fora
namorada de Romerito na juventude e o largara para fugir com um motociclista da
cidade, que tinha uma moto muito mais potente que a sua à época. Depois de
tantos anos, retomar este assunto mexeu com Romerito. Ele fechou os olhos, respirou
fundo, ficou em silêncio por alguns segundos e, só então, readquiriu as forças
para continuar a conversa:
- Glória... Glória... Como não a
reconheci, hein? Você mudou muito com o tempo...
- O tempo não foi generoso comigo como
foi para ti, Romerito! Estás com a mesma fisionomia da juventude... Quando
foquei o olhar em ti logo o reconheci...
- Que coisa a gente se reencontrar
depois de tantos anos... Que coincidência da vida, né?
- Eu não acho que seja coincidência.
- Como assim?
- Acho que é destino mesmo!
- Não entendi?
- Eu te chamei aqui para te contar algo.
Acho que chegou a hora...
- Estás me assustando!
- A Angélica morreu...
- Pode parar por aqui se me chamaste
para tentar defendê-la após esses anos todos... Eu amava aquela mulher! A mágoa
que ela me deixou nunca cicatrizará!
- Não é isso...
- Então, o que é?
- Terás que ser forte!
- Fala logo, Glória!
- Romerito: o Júlio é teu filho!
- Como é que é?
- Isso mesmo! O Júlio é teu filho. A
Angélica morreu guardando este segredo. Só eu sabia...
- Tu estás de gozação com a minha cara!
Que absurdo isso que estás me contando! Que mentira! Mentirosa! Mentirosa!
- Não é mentira, Romerito! Quando a
Angélica te deixou ela estava grávida de dois meses do Júlio...
- Isso não pode ser verdade! Isso não
pode ser verdade! Eu não vou engolir esta história assim! Ela sumiu no mundo!
Vai se saber o que fez por aí! Eu quero DNA!
Transtornado, Romerito deixou a
cafeteria e retornou para casa. Contou o ocorrido para a esposa e passou a
maior parte do tempo dos dois dias seguintes trancado em seu escritório. Quando
saiu de lá foi para voltar ao hospital.
No hospital.
Era uma tarde fria de quinta-feira.
Apesar do horário de visita no hospital, o quarto de Júlio, que permanecia em
coma, estava vazio. Romerito entrou e em pé ao lado da cama ficou fixamente
olhando-o por alguns minutos. Então, puxou do bolso da jaqueta uma velha foto,
em preto e branco, em que ele estava na sua moto, vestindo uma jaqueta de couro
preta e com o capacete na mão. Como passageira, trajando um vestido de Poá, a
mãe de Júlio. Romerito olhou-se jovem na foto e, inevitavelmente, comparou-se a
Júlio. Os longos cabelos iguais, os olhos azuis, o formato do queixo e a paixão
da juventude por motocicletas não deixavam dúvidas. Eis que apareceu Glória no
quarto e completou a constatação:
- Tu ainda achas que precisas de DNA,
Romerito?
Três semanas depois, Júlio saiu do coma
e em seguida foi liberado do hospital. Mandou consertar a moto, que ficou
danificada em alguns pontos com o acidente. Deverá ficar pronta amanhã e, se
não chover, ele e o pai Romerito irão dar uma volta juntos, em busca de recuperar
o tempo perdido...
* Jornalista e contista gaúcho
De fato, surpresas do começo ao fim. A única coisa previsível foi o acidente, mas quem tem moto acidenta, então... Muito boa história.
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