* Por
Mara Narciso
Era um menininho feio,
de cabelinho frito, fino e enroladinho. Fernando tinha pele clara, sorriso
permanente, uma simpatia. Chamava a atenção pela memória e coisas curiosas,
diferentes e engraçadas que falava, especialmente quando, aos três anos, leu
pela primeira vez as palavras “Montes Claros” num cartão da Unimed para
assombro da mãe dele, eu, e nunca mais parou de ler. Lia e escrevia tudo com as
letras de plástico dadas pela tia Carla. Quem mais se impressionava com as
habilidades daquele menino falante, eram as crianças de 7 anos, porque ele lia
correntemente, e elas não. Era tão interessante, que os vizinhos riam das
bobagens que ele falava, numa linguagem elaborada demais para sua idade. Dava
vontade de escrever. Coisa de mãe, ainda não acostumada com a habilidade mental
do menino.
Aos dois anos, passou a
fazer ludoterapia com uma psicóloga. Era assustador ver a pressa com a qual se
deslocava para ser rápido o suficiente para driblar os pais e pegar coisas que
em princípio seriam proibidas. Mal as pegava e já acabava com elas. Devido à
inquietude era incapaz de parar de correr, e arrebentaria os dentes frente a
qualquer obstáculo, pois numa escada, passaria direto e se quebraria lá
embaixo, se ninguém o segurasse. Pai, mãe, avó, tia, babá e psicóloga queriam
controlar a desatenção, hiperatividade e impulsividade daquela criança doce,
simpática, carinhosa que não conseguia ser contida.
Sua impulsividade
provocava os colegas que o estimulavam a fazer loucuras. Era engraçado vê-lo
aceitar os perigosos desafios, mas um dia perdeu a graça. Passaram a ser comuns
as caras feias, o corre e fecha a porta com rejeição de crianças e adultos. As
visitas de Fernando não eram bem-vindas. O mundo não aceita o diferente e quer
amarrá-lo, amordaçá-lo, escondê-lo.
Aos quatro anos foi
expulso da escola, um lugar totalmente inadequado, cuja professora era mudada a
cada mês. Sorte que encontramos um estabelecimento de ensino que fez muito por
ele. Na ocasião, a opressão sistemática não tinha um nome, mas o bullying
existia com força e quantidade castradoras. Portador de incoordenação motora,
Fernando se machucava nas quedas, mas, críticas, rótulos, beliscões no rosto e
perseguições eram bem mais contundentes. Os nomes que os colegas lhe apelidavam
rasgavam fundo: extraterrestre, cabeção, doido, epilético, burro, retardado.
Levou a pior quando tentou fazer amigos. Era perseguido, ridicularizado, não
aceito para trabalhos em grupo, e assim, se tornou isolado, falando pouco,
exceto aquelas frases fortes e soltas, de supetão, inadequadas para a situação
social em curso, devido à sua maneira impulsiva de ser. Na verdade, eram
desabafos.
Buscou outros caminhos
para se expressar como videogame, violão, guitarra, origami, Inglês, desenho,
televisão, cinema, gastronomia. Aos 16 anos iniciou musculação e passou a ter acesso
permanente à internet. Isolou-se ainda mais, criando um mundo próprio, enquanto
a sociedade continuava não lhe aceitando. Muitas vezes, devido ao seu jeito
alheio e desatento, achava uma porta aberta e entrava aéreo em locais públicos,
com curiosidade, sendo sistematicamente discriminado, maltratado e enxotado.
Segundo ele, isso ainda ocorre, por exemplo, quando olha uma revista ou livro,
pois mantém o hábito de sentar-se ao chão da livraria para folhear. Vai
comprar? Se não, saia daqui.
Quando criança, era
pior, mas adolescente ainda não conseguia ficar dentro da sala de aulas, e
andava a esmo pela escola. Ter de ficar sentado e prestar atenção eram tarefas
árduas. Tirava notas ruins, perdia prazos, não fazia os deveres, mas também não
matava aulas. Muito cedo, estava acordado. Dormia pouco, e às 6 h já estava
pronto para a escola. Ficava na internet até 2 h da manhã, descobrindo coisas e
estudando as décadas da sua paixão numa pesquisa exaustiva. Sua cultura vai
além do almanaque. Vem da internet. Também iniciou- se na leitura de livros,
especialmente biografias.
Dos 13 aos 18 anos
estudava duas horas por dia com professora particular de cursinho, numa espécie
de multimatérias. Aos 15 anos tentamos dispensá-la, mas perdeu o ano. Foi
readmitida até o vestibular, quando acertou mais de 70% do conteúdo de todas as
disciplinas.
Em 2004 contei a
história dele no livro “Segurando a Hiperatividade”. Dei esse nome por ser a
característica mais difícil de controlar. Nele denunciei como o mundo estava
despreparado para compreender, tolerar e aceitar quem tinha inteligência
normal, e até diferenciada, mas não conseguia avançar devido à desabilitação
nossa e da escola para acompanhá-lo e ensiná-lo. Foi interessante a repercussão
desse desabafo cru e sincero, pois o personagem era e continua bom.
Nunca abandonou o
tratamento com psicóloga, e aos 16 anos foi ao psiquiatra onde foi medicado com
Ritalina, medicação para ajudá-lo a terminar o que começa e organizar sua mente
hiperativa, impulsiva e dispersa.
Do curso de Turismo e
Hotelaria, o qual Fernando fez cinco períodos, foi para o de Design Gráfico,
mais relacionado com suas habilidades. Formou-se em dezembro de 2008. Emudecido
pela rejeição social, isolado pela exigência de comportamentos padrão, Fernando
Yanmar Narciso mantinha seu modo peculiar de ver o mundo, mas nem nós, os seus
pais, sabíamos o que ele desejava. Era algo como ser artista, embora já
trabalhe há 8 anos com o pai em projetos de prevenção de incêndio.
Uma noite, depois de
passar a madrugada no Youtube vendo comerciais de “comidas porcarias” de quando
ele era criança, vieram-lhe ideias mirabolantes e resolveu escreveu sobre
aquilo. Foi quando a sua primeira crônica aconteceu, e nós, seus pais, achamos
o texto bom e engraçado, e o incentivamos para que usasse esse caminho para se
comunicar. Assim, desenvolveu a escrita, mostrando um lado culto e bom
vocabulário.
Montou um blog, com
link direcionando a partir do Jornal Oportunidades, com textos e ilustrações,
dando vazão ao seu lado artístico, com belas imagens. Escreveu “Terra de
Excluídos”, uma espécie de romance, com personagens jovens e com diálogos
modernos. Fernando Yanmar Narciso se tornou escritor, porque pessoas próximas
gostaram e pediram para que escrevesse.
O raciocínio ferino e
as suas tiradas hilárias levam ao riso, e até a gargalhada. O que ele escreve tem graça, e nesse mundo
sisudo, isso é um dom. Conquistou espaços na mídia digital e impressa tendo
colunas cativas em alguns endereços eletrônicos. Para fazer seu primeiro livro
impresso “Um dia como outro qualquer” escolheu o que havia de melhor. O livro
pronto é a concretude do ser escritor. Com essa façanha, consideramos que foi
derrubada a dificuldade em se comunicar.
*Médica endocrinologista, jornalista
profissional, membro da Academia Feminina de Letras e do Instituto Histórico e
Geográfico, ambos de Montes Claros e autora do livro “Segurando a
Hiperatividade”
Parabéns ao Fernando, por sua saga cheia de desafios e vitórias. E a você também, Mara, pela sensível homenagem ao filho. Abraços a ambos.
ResponderExcluirSim, Marcelo, é a história de Fernando. Muitos desafios e muita coragem. Enfim, começamos uma nova etapa. Muito obrigada pelo carinho.
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