Liêdo e o Mercado de São José
* Por
Urariano Mota
Liêdo Maranhão de Souza
e o Mercado de São José constituem uma só pessoa. Ambos nascidos no Recife,
Liêdo é quem fala pelo Mercado, assim como um boneco e seu ventríloquo. Liêdo,
o mais jovem, tem apenas 88 anos, enquanto o Mercado anda pelos 138. Às vezes
penso que sem Liêdo Maranhão não haveria o Mercado de São José. Pelo menos não
existiria o Mercado em sua face humana.
Autor de 14 livros, não
fosse Liêdo Maranhão, boa parte da vida popular do Nordeste que veio ao Mercado
de São José estaria sem registro. Ele, como pesquisador, até parece um homem
sem escrúpulo, sem freios, porque recupera sem piedade a fala do povo com um
obsessão até o limite do pornográfico. Se pensam que nisso há exagero, eis
algumas falas gravadas no seu livro Fala Povão:
De Cícero, um
barraqueiro: “Não perca uma trepada, porque nunca mais você recupera. Pode dar
outra, mas aquela está perdida” .
De Conceição,
faxineira: “Eu só enjeito pisa”. Aí eu disse a ela: – “Opa, eu entendi pica”. E
ela: – “Pica eu não enjeito não, doutor”.
De Socorro: - Eu não
tenho medo de AIDS, porque a minha boceta eu lavo muito bem lavada. Só não lavo
com solução de bateria.
De Rubens, o popular
Rubens, vangloriando-se: - “Eu estou com 80 anos e ainda tenho tesão”. A isso
observou o sebista Melquisedec: - “Então você não usou, guardou”.
De Zé, da Lanchonete
Chá Mate Brasília: - Silva é um menino de ouro! Se derreter, dá o anel.
De um freqüentador do
bar do Gregório: - Eu estou com uma menina nova, mas é só penetração do
primeiro grau.
Do pastor José Luiz, na
praça, pregando o evangelho: - Paulo disse: “Bom seria que o homem não tocasse
em mulher”. E agora estão dizendo que Paulo era bicha!...
Do professor Viana,
materialista, discutindo religião na praça: - Todo cristão é masoquista de
carteirinha! Ele perde um braço e diz: “Graças a Deus eu fiquei com o outro”.
De um vendedor
ambulante, para um amigo: - O pastor tá metendo a aleluia na irmã!
Esse registro de Liêdo
da fala do povo, a fala crua, esse flagrante que dá os nomes rejeitados pela
formação hipócrita como chulos, com uma verdade que nos faz rir, como se o
popular fosse uma criança crescida, vocês vão me perdoar, vocês não vão
encontrar isso nem no Lazarilho de Tormes. Por isso lhe pergunto como é o seu
método, como ele consegue ser tão fiel à voz das pessoas do Mercado de São
José.
“Eu comecei com o
gravador. Tinha momento que o camarada dizia assim, ‘doutor, eu só digo isso se
o senhor desligar esse gravador’. Eram coisas íntimas, particulares, que ele
não queria falar para o mundo. Aí resolvi acabar com o gravador. Então eu ficava
conversando o camarada, e eu dizia ‘espere aí um momentinho, que a minha mulher
está me esperando ali na igreja’. Aí eu já tinha um caderno, chegava na igreja,
começava a escrever o que eu tinha ouvido. Aquelas coisas de sexo, eu escrevia
dentro da igreja. Depois eu voltava pra conversar mais.
Mas com os camelôs era
o seguinte: eu passei 10 anos ali, diariamente. Então eu já sabia o ‘disco’ de
cada um. Aquilo tudo ali é muito bonito, muito criativo, muito poético... Lá na
praça tinha uma prostituta, Maria. Ela tinha vários apelidos: era Maria
Branquinha, Maria Doida, Maria Chega Cedo, Maria Ligeirinho, porque ela quando
estava com um homem, batia nas costas dele, dizendo ‘vá, meu filho, goze logo,
vá’. Eu dava a maior atenção a ela. Então ela dizia a mim: ‘olhe, doutor Liêdo,
eu gosto do senhor, porque o senhor só gosta de rapariga, gente baixa e cabra
safado’. Isso pra dizer que eu gostava do povo da praça do mercado.
É difícil dizer qual a
pessoa mais marcante. Um tem um lado mais bonito, outro mais criativo, outro
mais engraçado... Por exemplo, o camelô Fazendeiro. Lembro que tinha uma
escultura minha, de ferro, que a Prefeitura do Recife comprou, era uma
homenagem ao Papa, à passagem do Papa no Recife. E Fazendeiro trabalhava
defronte à escultura. Na época, saiu no jornal que a Prefeitura tinha comprado
a escultura por vinte mil reais. E ele vendia umas pomadinhas a 1 real cada. Um
dia, quando ele tinha terminado as vendas dele, ficou olhando a escultura. E me
disse: ‘Mas doutor, o senhor botou no cu daquele Papa direitinho...’.
Tinha uma prostituta
lá, Isabel. Vivia na frente do antigo cinema Glória, ‘batendo calçada’, como o
povo diz. Ela chegou pra mim e disse: ‘meu filhinho, eu sonhei com você hoje’.
Eu disse: ‘jogue veado’. E ela: ‘Deu veado ontem, mas eu não vou jogar não,
porque você não tem nada de veado. Quisera eu ter um veadinho desse’. Quando
ela me viu pela primeira vez, ela chegou e disse: ‘Meu filhinho, você tem um
cigarro?’ Eu respondi: ‘Meu amor, eu não fumo’. Ela disse: ‘Não fuma, mas mete...’.
E eu: ‘Meto, mas estou esperando um amigo’. Eu esperava Fernando Spencer, o
cineasta. Não sei o que ela pensou depois, quando me viu junto dele...”
No entanto, diferente
de quem pensa que as coisas da terra brotam feito raiz, puras, Liêdo Maranhão explica como descobriu o povo
do Mercado de São José:
“A minha sensibilidade
pelas coisas daqui, por incrível que pareça, começou na Espanha. Uma vez, eu
estava em Madri, e num dia de domingo, um pintor brasileiro, Gerson Tavares,
pintor e cineasta, me convidou: ‘Liêdo, vamos ao Prado?’. Eu respondi: ‘Rapaz,
eu não gosto de corrida de cavalo não’. Então ele disse: ‘Mas rapaz, você é
grosso que é danado. O Prado é a maior coleção de pinturas do mundo, e você vem
com negócio de corrida de cavalo?’. Eu fiquei com uma vergonha tão grande...
quando eu cheguei lá e vi quadro do tamanho dessa parede (aponta o terraço da
sua casa), ‘A rendição de Breda’, as figuras de tamanho natural. Tinha um
cavalo castanho, aquela coisa brilhando, como se estivesse escovado... então
aquilo me tocou, sabe? Então eu comecei a frequentar o Prado. Todos os dias eu
ia lá. Fiz o meu aprendizado de arte.
Quando eu voltei ao
Recife, aí eu fiquei mais brasileiro. Passei três anos fora, aí vi que tinha
muita coisa pra fazer. A gente fica mais brasileiro. Note por quê. Na Espanha
tem o palácio da Alhambra, um palácio árabe muito bonito. E um americano,
estudioso do islamismo, foi para Granada. E fala com o prefeito pra morar no
palácio. Na época, estava abandonado, completamente. Aí o prefeito respondeu:
‘Olha, ali só vive malandro, vagabundo, ladrão. Que é que você vai fazer ali?’.
E ele argumentou: ‘Eu não tenho nada pra me roubarem’. E foi. E aqueles
vagabundos, que viviam lá, começaram a cercar o americano, a fantasiar e contar
história. Então ele, era o escritor Washington Irving, escreveu um livro,
Cuentos de La Alhambra, Contos da Alhambra. E por isso o governo espanhol se
interessou e restaurou, e lá tem uma placa com a frase ‘aqui viveu Washinton
Irving’. Então quando eu cheguei na praça do Mercado de São José, o pessoal
começou a contar coisa de mulher, de remédio, eu me disse: ‘Pronto, aqui é
minha Alhambra”. Se eu não tivesse saído do Recife, eu não era o que sou. A
minha fome do meu povo. Me descobri. Nunca pensei que tinha isso. Aí começou a
minha Alhambra. Aí eu fui pro Mercado.
Aquele livro que eu
tenho, ‘O Mercado, sua praça e a cultura popular do Nordeste’, motivado por
ele, uma vez eu levei Athos Bulcão, um arquiteto da equipe de Niemeyer. Athos
Bulcão me disse: ‘Liêdo, isso é a Grécia antiga. Isso é o teatro antigo da
Grécia, esse pessoal aí na praça, representando’. Ele se referia aos camelôs,
os come-vidro, engole-cobra, os cantadores, mas sobretudo aos camelôs de
remédio, que são muito inteligentes. Inventam até nomes para as drogas que
vendem. Tem uma que é a ‘Resina da Gerimataia’. Outro: ‘Banha do
peixe-elétrico’. Eu vou te contar uma de um camelô, pra você ver que beleza.
Tinha um que vendia catuaba, que era pra tesão, aquela coisa afrodisíaca. Ali é
um ambiente de mulher, de prostituta... então ele com a garrafa na mão, uma
‘garrafada’, aquele pessoal todo ao redor, a gente chamava ele de Fazendeiro,
porque usava um chapelão, era muito gordo. Pois Fazendeiro pegava a garrafa e
dizia: ‘Isso aqui é pra esses tipos de homem que chega em casa de noite, se
deita com a mulher, e fica fundo com fundo, feito casa de vila’. E continuava:
‘Agora você compra este remédio e dê à nega véia, que a nega véia fica quente
que só fundo de chaleira. Porque o homem que compra o remédio e não dá à
mulher, duas coisas acontecem: ou ele tá liso, ou ele não gosta da mulher’.
Outro camelô dizia assim: ‘O homem mais a mulher é como uma balança: quando um
sobe, o outro sobe, quando um desce, o outro desce, quando um chega, o outro
chega, aí é tutu com tutu e bumbum com bumbum’. Eu tenho tudo isso anotado. Eu
tenho um livro com tudo isso, ‘Marketing dos camelôs de remédio’.
Quando lhe pergunto
quem é Liêdo Maranhão, ele me responde:
“Sou Liêdo Maranhão de
Souza, nascido em 3 de julho de 1925, no Recife, bairro de São José. Sou
dentista e esquizofrênico cíclico, como um amigo psiquiatra já me disse. Sou
poliglota: falo espanhol, francês, e falo gago também”.
Mas seria mais próprio
saber quem ele é pelo que ele salva, como neste registro:
“Microfone é um
barraqueiro famoso, do Mercado. Uma vez, um freguês tomando uma sopa no boxe de Microfone, no
Mercado, achou uma pedrinha na sopa. Aí o cara reclamou: ‘Microfone, nessa sopa
tem pedra’. E Microfone, no ato: ‘Olhe, se fosse brilhante, você não dizia
nada’. E completou, pra fulminar: ‘Pedra em sopa é fato natural’. Eu lembro que
Microfone, quando foi entrevistado no Fantástico, o repórter perguntou a ele de
onde vinha o apelido Microfone. E ele respondeu: ‘Vem da minha loquacidade,
porque eu sou muito loquaz’. Eu notei que o repórter ficou todo desconfiado,
sem saber o significado de loquaz. Feito a história do camarada que foi
assistir a um filme, e quando saiu, um conhecido perguntou a ele: ‘Que tal o
filme?’. Ele disse: ‘Rapaz, tem uns bons close-ups’. O cara voltou: ‘E o que é
close-up?’. E ele respondeu: ‘Rapaz, deixe eu viver em paz...’. É uma beleza,
não é?”
Sem dúvida, essa
entrega à pesquisa e registro do povo são uma beleza.
***
Em “Dicionário Amoroso
do Recife”
“Dicionário Amoroso do Recife”, a intensa
carta de amor da cidade pernambucana para os recifenses, pode ser encontrado na
Livraria Cultura Paço Alfândega, no Recife Antigo, e também aqui, na Livraria
Cultura.
*
Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da
redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações
Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife” e
“Dicionário amoroso de Recife”. Tem
inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.
A espontaneidade pode ferir ouvidos sensíveis (e falsos), porém, rende excelentes gargalhadas. Personagem e texto imperdíveis.
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