Maratona de angústias
* Por Pedro J. Bondaczuk
A vida do artista, notadamente do
escritor – e, mais especialmente, ainda, do poeta – é uma contínua e quase
interminável maratona de angústias. Esse indivíduo sensível, dotado do raro dom
de vislumbrar além da realidade, concebe mundos fantásticos, de luz e paz, mas
se angustia, e chega a beirar o desespero, ao constatar que, em decorrência de
comportamentos equivocados (próprios e dos demais companheiros dessa aventura
incrível e sem reprise, que é o privilégio de viver, cujo termo desconhecemos)
a realidade é muito diferente das suas concepções ideais.
O artista mantém um duelo
permanente em busca do perfeito e do belo. Suas obras, por mais que se
aproximem da perfeição, nunca o satisfazem. Sempre há um detalhe, uma nuance,
um “que” a mais a ser aperfeiçoado, cortado, acrescentado, burilado, polido etc.
É um esforço, um trabalho, uma faina sem fim. Dependesse apenas dele, nenhum
poema, nenhuma tela, nenhuma escultura ou composição musical seriam, jamais, dados
por concluídos. O artista se debruçaria sobre elas uma vida inteira, até seu
derradeiro suspiro, no intento de fazê-la perfeita. O resultado, claro, seria
frustração. A perfeição é vedada aos reles mortais.
Guilherme de Almeida estava
coberto de razão ao escrever, na crônica “Literatice”, publicada em sua então
tradicional coluna “Eco ao longo dos meus passos” do jornal “O Estado de São
Paulo”, em 2 de agosto de 1968: “O estudo do belo é apenas um duelo no qual o
artista grita de terror antes de ser vencido”. A beleza, literalmente (ao
contrário do que se pensa, ou seja, que acalme) aterroriza, pelo seu mistério,
sua transcendência e profundidade. Aterroriza e escraviza. Coage o artista, o
intima, duela com ele e o vence.
Todas as artes me atraem, me
fascinam, me encantam, me embevecem e...me aterrorizam. A que me causa maior
fascínio, todavia, é a música. É o talento de juntar sons dispersos e variados,
que isoladamente não passariam de incômodos ruídos, mas que, em conjunto,
expressam harmonia, embevecem a alma e produzem sensações agradáveis (e
inenarráveis) na mente e até no corpo.
Consta, da mitologia grega, que o
mais talentoso músico que já viveu, quer como intérprete, quer como compositor,
foi Orfeu, filho da musa Calíope. Quando tocava sua lira, que ganhou de Apolo
(o qual, se dizia, seria seu verdadeiro pai), todos os seres viventes, animais
ou vegetais, se submetiam ao seu encanto. Isso, claro, antes da trágica perda
de Eurídice, sua amada, à qual desposou. Depois... Bem, essa fase não cabe
aqui, nestas considerações.
Quando Orfeu tocava sua lira, os
pássaros paravam de voar e se reuniam ao seu redor, embevecidos com tamanha
harmonia. Os animais selvagens amansavam e se tornavam inofensivos. Sua música
tinha o poder de acalmar as mais perigosas feras a ponto de adormecê-las. Até
as árvores se curvavam, em reverência, e para apreender cada nota musical, que
reverberavam e multiplicavam de intensidade.
A música, hoje, é tida, nos mais
avançados centros médicos dos Estados Unidos, da Europa e do Brasil, como um
santo remédio. A medicina incorporou-a ao seu arsenal terapêutico e até lhe
destinou uma nova disciplina: a musicoterapia. Já em culturas antigas, numa
época em que não existiam as sofisticadas drogas de hoje para relaxar o
organismo e possibilitar que a natureza cumprisse seu papel, fazendo com que o
corpo liberasse endorfina e acelerasse a regeneração orgânica, essa arte era
utilizada para abreviar a recuperação de doentes.
Depois da Segunda Guerra Mundial,
alguns médicos constataram que a música tem a capacidade de derrubar as
barreiras psicológicas que os enfermos desenvolvem e de fazer com que sua
condição mental se estabilize. E o método se mostra sumamente eficaz não apenas
no tratamento de doenças de fundo nervoso. Até pacientes com câncer vêm sendo
submetidos a essa agradabilíssima terapia, com resultados surpreendentes e, não
raro, “milagrosos”.
Diante do mistério da beleza – da
qual me considero eterno servidor – faço minha a indagação de Ernesto Sábato,
em seu livro “Antes do fim”: “A que epifânias de enigmáticos deuses o destino
me conduziu?”. Sim, a que? Onde, quando e por que fiz essa opção de vida, que
me torna tão diferente dos meus pares? Não sei!
Só sei que a cada manhã, recito,
contrito, a mesma prece de Charles Baudelaire: “Ó Senhor! Dai-me força e
coragem para contemplar sem asco meu corpo e meu coração!”. O primeiro, dada a
deformação causada pela deterioração natural produzida pelos anos. O segundo,
tendo que resistir à cotidiana e constante maratona de angústias, ditada pela
frustração de jamais atingir a beleza absoluta e irretocável, por mais que
tente. E, arremato estas esparsas reflexões com a constatação de Ernesto
Sábato: “Ainda que seja terrível compreendê-lo, a vida se faz um rascunho, e
não nos é dado corrigir suas páginas”. O que for escrito, permanecerá, para
sempre, intocável e sem possibilidades de emendas, ou como testemunho da nossa
incompetência, ou como libelo do nosso estranho destino.
* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio
Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor
do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico
de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos
livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos),
além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O
Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com.
Twitter:@bondaczuk
Muito bonito e perturbador. E como!
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