O amestrado Geraldo Vandré
* Por
Urariano Mota
O leitor Xico Júnior,
na coluna passada, pediu um texto sobre Geraldo Vandré. Procurarei atendê-lo
agora. Lembro que ao ver a entrevista de Vandré na Globo News, passei dias
ruminando. Vinha uma canção íntima, que na década de 70 era senha:
“Eu vou levando a minha
vida enfim
Cantando e canto sim
E não cantava se não
fosse assim
Levando pra quem me
ouvir
Certezas e esperanças
pra trocar
Por dores e tristezas
que bem sei
Um dia ainda vão
findar...
Deixa que a tua certeza
se faça do povo a canção
Pra que teu povo
cantando teu canto ele não seja em vão”
Que revolução queríamos
naqueles anos, quando ouvíamos a canção de Vandré? Que peitos puros guardávamos
ainda não provados pela luta? Agora, aparecia na entrevista: um velho de boné,
com a insígnia da FAB, cabisbaixo, com o pensamento cheio de interrupções. O
diabo era que nesse pensamento falho, ainda assim, sobrevivia uma certa lógica,
como naquele louco Hamlet. Havia uma certa memória, montada, como em toda
memória,mas, no caso de Vandré, com os cortes cirúrgicos que expurgavam a
violência do regime militar.
E houve então a
primeira ressalva, ao entrevistador. Ocorre com Geneton Moraes Neto (junto com
Vandré na foto) o que é comum em 99% dos repórteres na imprensa do Brasil: eles
não entendem nada vezes nada da ditadura. Não é que alguns, pela idade, não
tenham passado por aqueles malditos tempos de Médici (por coincidência, o
período da volta de Vandré ao Brasil). Alguns viveram, mas a sua experiência é
exterior aos perseguidos. Devo dizer, eles não comeram e beberam com e daqueles
jovens entusiastas que viviam no limite, clandestinos, entre ruas escuras,
promessas de barbárie e bares infectos. Daí que os jornalistas cometam os
maiores erros. Eles não têm o conhecimento sofrido da dinâmica.
Pela pesquisa, pelo
aprendizado humilde, atento e curioso, poderiam driblar essa impossibilidade da
experiência vivida. Mas não, na entrevista parecia que Vandré era autor de duas
músicas, Disparada e Caminhando. Pela insistência do repórter nessas canções,
parecia. No entanto, há um momento na entrevista em que Vandré refuga, como um
cavalo refuga, a seu caráter de compositor engajado. Se o entrevistador
houvesse ido além das duas canções, poderia ter lembrado uma canção do senhor
de boné, direta como um soco:
“O terreiro lá de casa
Não se varre com
vassoura,
Varre com ponta de
sabre
E bala de
metralhadora....”.
Mas isso ficou oculto
das pessoas que viram o compositor pela primeira vez. É possível que houvesse
uma pauta prévia, aquela que todo repórter hoje no Brasil tem antes da
realidade. A saber, no caso do velhinho: na pauta, havia que mostrar Vandré
como um sobrevivente da velha esquerda, recuperado com vivas aos militares. A
pauta do escândalo. Nesse particular sentido, a entrevista foi um sucesso. Na
verdade, ela nem precisava da presença física de Vandré, bastavam-lhe os
elementos essenciais da caricatura: um velho, um boné e a logomarca da Força
Aérea Brasileira. O que deveria ser uma revelação do que o regime de 64 fez com
um compositor de gênio, transformou-se em uma exibição de paradoxos e ruínas.
Na verdade, Vandré já
oferecera antes à imprensa as linhas mestras da sua derrocada. Antes até da sua
canção de homenagem à FAB. No coletivo virtual “Os amigos de 68”, uma militante
médica, a quem não pedi autorização para divulgar o nome, informou:
“...Foi em torno de 74,
quando eu fazia residência no Pinel. Conheci Vandré quando ele foi internado na
emergência psiquiátrica da Clínica de Botafogo. Motivo alegado: Vandré estaria
‘armado com uma faca’ e ameaçava matar a sua irmã. Só o vi dias mais tarde, quando
tocava violão para os internos no pátio da Clínica. Aparentava ‘tranquilidade’,
mas sua fisionomia era de dor. Ele era ouvido com atenção e certa admiração.
Sabiam que se tratava de um compositor famoso. Não consigo me lembrar o que
tocava. Fiquei muito emocionada e chocada com tudo aquilo. Era o resultado das
muitas torturas que ele sofrera na repressão dos anos 60/70...”
Hemingway em “O Velho e
o Mar” dizia que é possível destruir-se um homem, mas nunca derrotá-lo. Na
entrevista, o que se viu foi um homem ainda em estado de terror, em plena
democracia. Nela, Vandré nos lembra os elefantes amestrados, torturados, que
levantam a pata para o público no circo. Por isso não sabemos ao fim se o gênio
de Vandré foi destruído. Peguemos então um caminho de esperança: Vandré
continua nas suas canções, ele não foi derrotado.
*
Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da
redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações
Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife” e
“Dicionário amoroso de Recife”. Tem
inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.
Eu vi a matéria e sofri com o andar da reportagem. Não me pareceu que aquele gigante tivesse caído de pé. A força da tortura dobra mentes, transforma sabres em vassouras. As imagens provavam que isso aconteceu.
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