Cuidado no tempero
* Por Cecília França
Beth imaginava aquele encontro há
pelo menos dois anos, desde que aquele par de olhos matadores entrara no
escritório e em sua vida. O dia passara voando, embalado por sua ansiedade, e
nem lhe dera tempo para uma escova nos cabelos. Fazia agora a última revisão
dos itens que garantiriam o sucesso da noite – ao lado de seu pretinho básico.
No canto da mesa, o vinho tinto
aguardava pelo prato principal. Claro que ela havia pesquisado as preferências
de seu candidato e preparara o camarão quase na hora marcada para garantir que
estaria com sabor de fresco. Soubera que Carlos era daqueles que se deixavam
fisgar pelo estômago.
A dez minutos da hora marcada,
soou a campainha. Ela já ia correndo para a porta quando se notou de chinelos e
deu meia volta rumo ao quarto. Não se lembrava de ter sentido agonia igual nos
últimos vinte anos de vida! Ainda teve tempo de olhar-se mais uma vez no
espelho e ficou satisfeita com o que via. Seu sorriso habitual estava ainda
mais escancarado.
Abriu a porta de maneira
paciente. Carlos mostrava-se elegante – como ficaria até mesmo de bermuda e
chinelos. Vestia paletó marrom por sobre a camisa branca semi-aberta, traje que
combinava perfeitamente com seus olhos de mel. Foi ele quem disse
"oi" e beijou-a na face levemente.
Convidou-se a entrar enquanto
Beth ainda sorria tentando, sem sucesso, não parecer boba. Ele já sentara no
sofá quando ela ofereceu-lhe um drinque ao som de Frank Sinatra, o que o deixou
extasiado – sim, ela investigara a fundo a vida dele. Conversaram por mais de
meia hora sobre seus relacionamentos passados, os boatos do escritório, seus
hábitos, até que chegaram ao fatídico momento de silêncio, que ele quebrou
confessando-lhe sua atração por ela.
Beth quis pular o jantar e partir
para a sobremesa, mas manteve-se quase inabalável e pediu-lhe que sentasse à
mesa. Ela já havia pegado o saca-rolhas quando ele ordenou que deixasse a parte
braçal com ele. Como ela previa, era um perfeito cavalheiro.
Sua salada fez o sucesso
aguardado e era hora de arrematar a boa impressão com o prato principal.
Salpicou cebolinha sobre o camarão com batatas e pousou a panela na mesa.
Carlos fez questão de servi-la primeiro e ela pediu que provasse antes e lhe
desse o veredicto. Ele a encarava enquanto levava o garfo à boca insinuando um
sorriso safado. Abocanhou o camarão com voracidade mantendo o olhar fixo no
dela.
Ela já estufava o peito à espera
dos elogios quando a expressão de satisfação no rosto de Carlos foi
esmorecendo. Ele mastigava cada vez mais devagar e por fim manteve a boca
estática; seu olhar agora estava baixo, colado no prato. Ela tinha a impressão
de que ele engasgara. Perguntou-lhe o que havia de errado enquanto ele secava a
taça de vinho e apontava para o paletó. Rapidamente ela provou o camarão e
entendeu. O gosto era de puro sal.
Carlos, a essa altura, tossia
continuamente e sua face era de um vermelho rubro. Ela começou então a desferir
desenfreados tapas em suas costas sem ouvir suas súplicas, entre uma tosse e outra,
para que parasse. Só aí ele conseguiu, enfim, tirar um comprimido do bolso do
paletó, tocou-lhe garganta adentro e tomou mais vinho.
A crise passava aos poucos
enquanto Beth tagarelava dizendo que não entendia como aquilo acontecera e
mentindo que camarão era sua especialidade, que nunca errara na cozinha, e tal.
Falava tanto que mal viu quando Carlos pegou seu paletó e retirou-se, ainda
tossindo, agora mais espaçadamente.
Beth investigara suas
preferências, porém, esquecera-se de especular sua ficha médica, que
diagnosticava hipertensão. Diante do fiasco, pegou-se sozinha, em pé na sala,
olhando para a salmoura que se assemelhava a camarões e formulando um método
infalível para evitar outra gafe. Seu próximo primeiro encontro seria em um
restaurante.
* Jornalista
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