Duas traduções da missa do galo
* Por
Urariano Mota
Em 29 de setembro de
2013, completaram-se 105 anos da morte de um dos maiores escritores do Brasil.
Daí que recupero um texto sobre os obstáculos mal vencidos em duas traduções de
Missa do Galo.
De imediato, aos
tradutores de Machado de Assis devemos prestar a nossa solidariedade, a nossa
compreensão, o nosso agradecimento. Se possível, nessa ordem. E para que bem
entendam as nossas boas intenções, daquelas que enchem o inferno, transcrevemos
palavras da tradutora norte-americana Daphne Patai:
“Todo mundo que lê
Machado entende por que ele é um escritor bastante difícil. Não é que ele use
um vocabulário muito difícil, acho que não, mas a ironia e a sutileza com que
ele escreve fazem com que qualquer tradução seja bastante difícil. É difícil,
realmente, captar o tom e as nuances de Machado numa outra língua. E coisas que
ele faz, com apenas uma ou duas palavras em português, dificilmente se traduzem
para o inglês. Muitas vezes, o tradutor tem que não tanto traduzir, mas
explicar o que Machado está dizendo”.
Guardadas as diferenças
da nossa língua para o inglês, de quantidade e qualidade, a dificuldade
mencionada se aplica também ao espanhol, essa língua irmã tão enganosamente
semelhante ao português. Diríamos mais, a leitura de Machado de Assis por vezes
exige uma tradução astuciosa até para os falantes nativos. E não dizemos isso
por gosto do paradoxo. Machado, como todo grande escritor, cobra o preço de
leituras amadurecidas, de saber e experiência feitas, antes de revelar o seu
encanto. O gênio mulato cobra o preço de uma sensibilidade educada, uma
cobrança que, por justiça, começa para os leitores da sua nacionalidade. Se
isso ele faz com os leitores da própria língua, o que não fará com estrangeiros?
***
Cumprimentos prestados,
vamos ao trabalho. Acompanharemos duas traduções do conto para o espanhol, uma
de Gabriela Hernández, e outra de Elkin Obregón. Tentaremos comentar alguns
pontos de divergência delas em relação ao original. E que Jesus nos ajude,
porque assim começa Machado:
“Nunca pude entender a
conversação que tive com uma senhora, há muitos anos, contava eu dezessete, ela
trinta. Era noite de Natal. Havendo ajustado com um vizinho irmos à missa do
galo, preferi não dormir; combinei que eu iria acordá-lo à meia-noite.”
Gabriela Hernández:
“Nunca pude entender la
conversación que tuve con una señora, hace muchos años, tenía yo diecisiete,
ella treinta. Era noche de Navidad. Había acordado con un vecino de ir a la
misa de gallo, preferí no dormirme; quedamos en que yo lo despertaría a
medianoche”.
Elkin Obregón:
“Nunca pude entender la
conversación que sostuve con una señora, hace muchos años, tenía yo diecisiete,
ella treinta. Era la noche de Navidad. Habiendo convenido con un vecino en ir
los dos a la misa de gallo, preferí no dormir; acordamos que yo iría a
despertarlo a medianoche.”
À primeira vista, tudo
é igual. Queremos dizer, a partir do primeiro parágrafo os leitores do original
e das duas traduções sabem que o narrador se põe na pele do personagem, e passa
a narrar uma conversação mantida com uma senhora, sendo ele um jovem, em uma
noite de Natal. O fato, a cadeia de fatos, o “enredo” é mantido. Mas a segunda
é mais fiel, nos parece, porque acompanha os tempos verbais do autor. Adiante.
“A casa em que eu
estava hospedado era a do escrivão Meneses, que fora casado, em primeiras
núpcias, com uma de minhas primas. A segunda mulher, Conceição, e a mãe desta
acolheram-me bem, quando vim de Mangaratiba para o Rio de Janeiro, meses antes,
a estudar preparatórios. Vivia tranqüilo, naquela casa assobradada da Rua do
Senado, com os meus livros, poucas relações, alguns passeios. A família era
pequena, o escrivão, a mulher, a sogra e duas escravas. Costumes velhos. Às dez
horas da noite toda a gente estava nos quartos; às dez e meia a casa dormia.
Nunca tinha ido ao teatro, e mais de uma vez, ouvindo dizer ao Meneses que ia
ao teatro, pedi-lhe que me levasse consigo. Nessas ocasiões, a sogra fazia uma
careta, e as escravas riam à socapa; ele não respondia, vestia-se, saía e só
tornava na manhã seguinte. Mais tarde é que eu soube que o teatro era um
eufemismo em ação. Meneses trazia amores com uma senhora, separada do marido, e
dormia fora de casa uma vez por semana. Conceição padecera, a princípio, com a
existência da comborça; mas, afinal, resignara-se, acostumara-se, e acabou
achando que era muito direito.”
Gabriela Hernández:
“La casa en la que
estaba hospedado era la del escribano Meneses, que había estado casado en
primeras nupcias con una de mis primas. La segunda mujer, Concepción, y la
madre de ésta me acogieron bien cuando llegué de Mangaratiba a Río de Janeiro,
unos meses antes, a estudiar preparatoria. Vivía tranquilo en aquella casa
soleada de la Rua do Senado con mis libros, unas pocas relaciones, algunos
paseos. La familia era pequeña, el notario, la mujer, la suegra y dos esclavas.
Eran de viejas costumbres.
A las diez de la noche
toda la gente se recogía en los cuartos; a las diez y media la casa dormía.
Nunca había ido al teatro, y más de una ocasión, escuchando a Meneses decir que
iba, le pedí que me llevase con él. Esas veces la suegra gesticulaba y las
esclavas reían a sus espaldas; él no respondía, se vestía, salía y solamente
regresaba a la mañana siguiente. Después supe que el teatro era un eufemismo.
Meneses tenía amoríos con una señora separada del esposo y dormía fuera de casa
una vez por semana. Concepción sufría al principio con la existencia de la
concubina, pero al fin se resignó, se acostumbró, y acabó pensando que estaba
bien hecho”.
Elkin Obregón:
“La casa en que me
hallaba hospedado era la del escribano Menezes, quien había estado casado, en
primeras nupcias, con una de mis primas. La segunda esposa, Concepción, y su
madre, me acogieron muy bien, cuando vine de Mangaratiba a Río de Janeiro,
meses antes, a hacer el curso de ingreso a la universidad. Vivía tranquilo, en
aquella casa de dos plantas de la Calle del Senado, con mis libros, pocas
relaciones, algunos paseos. La familia era pequeña: el escribano, la mujer, la
suegra y dos esclavas. Costumbres a la antigua. A las diez de la noche todos
estaban en sus aposentos; a las diez y media la casa dormía. Yo nunca había ido
al teatro, y más de una vez, oyendo decir a Menezes que se iba al teatro, le
pedí que me llevase con él. En tales ocasiones la suegra hacía una mueca, y las
esclavas se reían con disimulo; él no respondía, salía y sólo volvía a la
mañana siguiente. Más tarde supe que el teatro era un eufemismo en acción.
Menezes tenía amores
con una señora, separada del marido, y dormía fuera de casa una vez por semana.
Concepción había sufrido, al principio, por la existencia de la concubina.
Pero al fin se había resignado, se había acostumbrado, y terminó pensando que
aquello era una cosa normal”.
As divergências aqui
deixaram de ser pequenas. Ambas traduções tentam melhorar o original, na
esperança de torná-lo mais compreensível, ou razoável. Mas cada uma à sua
maneira. Mirem.
Em Gabriela Hernández
ocorre o que nos parece mais grave. Ela abre um parágrafo depois de “Eran de
viejas costumbres”, e com isso fere a ambiguidade em Machado, que ao escrever
“A família era pequena, o escrivão, a mulher, a sogra e duas escravas. Costumes
velhos. Às dez horas da noite toda a gente estava nos quartos…”, alcança com
“Costumes velhos”, entre duas frases, as duas escravas e o costume da família
em se deitar cedo. No corte feito por GH, não. As viejas costumbres se associam
à prática de possuir escravas, o que Machado, mulato e humanista, não deixaria
de observar. Pero não de maneira clara, digamos, pois estava na pele de um
narrador integrado aos quadros de cima e costumes do Brasil. Nesse trecho,
menos graves são as interpretações, em lugar do traduzir, de algumas palavras.
O “assobradado” (casa rica, à semelhança de um sobrado, com pavimentos sobre o
térreo) se transforma em “casa soleada”; as caretas da sogra sofrem um câmbio
para gesticulación, e as escravas que “riam à socapa”, às escondidas, passam a
escravas que “reían a sus espaldas”, às costas do senhor e patrão.
Em Elkin Obregón as
adaptações são outras. O sobrado, ou o assobradado, se perde o fausto, ganha o
sentido da raiz da palavra, porque se torna uma “casa de dos plantas”, de dois
andares. Mas um abuso, menos pequeno, é quando a tradução encerra o parágrafo
em “eufemismo en acción”, para reiniciar um com “Menezes tenía amores con una
señora”, que explica o eufemismo das saídas para o teatro, que Machado
escrevera. Não sabemos se isto – esses parágrafos de diagramação, de “estética”
– se dá porque o leitor há de ser ajudado na vista, para ter uma leitura
agradável, ainda que se mutile o pensamento, a expressão original. Não sabemos
por quê. Será que tal coisa só é respeitada na escrita sem fim de Marcel
Proust? Será que só uma pessoa da corte, sem corte de parágrafo, pode iniciar
uma pergunta a Swan na página 9 para concluí-la na página 193 ?
Se nos permitem uma
digressão plebeia, com rigoroso respeito a cortes, lembramos que no texto
“Enmendando Cervantes”, nós chamávamos a atenção para o fato de que há um
respeito quase místico dos tradutores pela poesia, quando poema. Já pela prosa,
ah, prosa é prosa, acredita-se até que prosaico é o seu alter ego. Se se impõem
parágrafos onde antes não havia, isso quer apenas dizer, talvez, que o leitor
sai gratificado. Adiante.
“Boa Conceição!
Chamavam-lhe ‘a santa’, e fazia jus ao título, tão facilmente suportava os
esquecimentos do marido. Em verdade, era um temperamento moderado, sem
extremos, nem grandes lágrimas, nem grandes risos…”.
Gabriela Hernández:
“Qué buena Concepción!
La llamaban santa, y hacía justicia al mote, soportaba muy fácilmente los
olvidos del marido. En verdad era de un temperamento moderado, sin extremos, ni
lágrimas, ni risas….”
Elkin Obregón:
“¡La buena de
Concepción! La llamaban ‘la santa’ y hacía honor al título, tan fácilmente
soportaba los olvidos del marido. En verdad, era un temperamento moderado, sin
extremos, sin muchas lágrimas ni risas…”
Acima, são trechos que
falariam da inadequação de “mote’, apelido, na tradução de Gabriela Hernández,
para a palavra “título” do original, ou de “sin muchas lágrimas ni risas”, na
tradução de Elkin Obregón, para o “nem grandes lágrimas, nem grandes risos” que
esclarece o sentido de moderado, na escrita de Machado. Há uma diferença de
tom, de tonalidade, de gradação, do original para o traduzido. Isso poderia e
poderá ser pontuado em toda a tradução, nessa particular de Missa do Galo, e em
toda e qualquer tradução, em todo o mundo. A perfeita versão é impossível, o
sentido e sabor que tem uma palavra na língua materna, isso se perde para
ganhar outra nuance, em outro idioma. Sabemos. Daí que os tradutores, esses
artistas tão mal remunerados, são facilmente transformados em saco de pancada,
em punch ball de qualquer crítico amador. Em outro extremo, os tradutores,
quando atingem um grau de excelência, se tornam uma ponte de culturas, uma
ligação indispensável entre os mundos de gentes distantes. Eles terminam por
conhecer além do peso específico de uma palavra. Em um extremo inalcançável,
talvez, o tradutor ideal passearia com intimidade pela música, pela geografia,
pelo cinema, pela gíria de classes, pela fala, acentos particulares, como se
fosse um espião de outro país a se confundir com um nativo culto, em resumo.
Não poderemos jamais exigir tanto, ainda que não estejamos proibidos de sonhar
com essa provável impossibilidade.
Mas há uma exigência
que temos o direito de exigir em uma tradução. Que é: devolvam-nos por favor o
sentido que adentra o espírito, o quê de mistério e de estranheza, o quê de belo
e de amargo e doce que há no original, quase como uma imagem física de uma
pintura, onde ficamos horas a navegar, como certamente um dia ficaremos no
Prado ou em Florença. Aquela aura, auréola, que não é de ouro, mas de
atmosfera, aquele clima em torno, aquela concreção de carne ou de ar, aquele
impulso de lançar uma taça de vinho ao teto, quando o entusiasmo nos faz gritar
bravo!, arretado!, carajo!, isso gostaríamos de retomar na obra traduzida. Para
cessar de erguer platitudes, digamos desde já que existe um momento nestas duas
traduções de Missa do Galo que prejudica e muito o sentido original do conto de
Machado de Assis. E nos perdoem se a nossa frustração não se tornar expressa.
Mirem.
“Conceição entrou na
sala, arrastando as chinelinhas da alcova. Vestia um roupão branco, mal
apanhado na cintura. Sendo magra, tinha um ar de visão romântica, não
disparatada com o meu livro de aventuras. Fechei o livro; ela foi sentar-se na
cadeira que ficava defronte de mim, perto do canapé. Como eu lhe perguntasse se
a havia acordado, sem querer, fazendo barulho, respondeu com presteza:
– Não! qual! Acordei
por acordar”.
Gabriela Hernández:
“Concepción entró en la
sala, arrastraba las chinelas. Traía puesta una bata blanca, mal ceñida a la
cintura. Era delgada, tenía un aire de visión romántica, como salida de mi
novela de aventuras.
Cerré el libro; ella
fue a sentarse en la silla que quedaba frente a mí, cerca de la otomana. Le
pregunté si la había despertado sin querer, haciendo ruido, ella respondió
enseguida:
– ¡No! ¡Cómo cree! Me
desperté yo sola”.
Elkin Obregón:
“Concepción entró en la
sala, arrastrando sus chinelas. Vestía una levantadora blanca, mal anudada en
la cintura. Siendo delgada, tenía un aire de imagen romántica que no
desentonaba con mi libro de aventuras. Cerré el libro; ella se sentó en la
silla que estaba frente a la mía, cerca del canapé. Como yo le preguntase si
la había despertado, sin querer, haciendo ruido, me respondió con rapidez
— No, de ningún modo;
desperté porque sí”.
Notem. Missa do Galo
retira, antes, robustece a sua força no clima de insinuação de erotismo que
pervaga as personagens, o diálogo. A sensualidade não se exibe escandalosa, é
uma nuvem que se deixa adivinhar, pela hora da noite, pela ausência do marido
que está na casa de uma amante, pela situação em que se encontra o jovem, pelo
cenário que desenha o narrador. A sua voz planta um lenço cifrado como Iago,
enquanto as falas da senhora e do estudante contam outra coisa. Afirmaríamos
mesmo, o que eles dizem pouco importa. O perfume e a embriaguez vêm de quem
narra, traiçoeiro e venenoso com ares de inocência. Ele, a voz que narra,
afirma que não entende o acontecido até hoje, e quer nos fazer entender que nós
saberemos melhor do que ele, pelo que nos fala. Pela feição exterior, ele era
um jovem tonto, bobo, ela era uma mulher pura, uma santa, a unir assuntos
conexos e desconexos na noite de Natal, sozinhos no silêncio da casa grande.
Pela feição realizada, há um carinho a ponto de explodir, pelos elementos
dispostos pelo narrador, que usa as palavras como um certo Machado de Assis,
esse bobo bruxo. O conto inteiro é uma possibilidade de amor. Armado e arrumado
como está, o deslocamento de palavras básicas, insubstituíveis, repetimos,
insubstituíveis, fazem uma falta tremenda no ambiente eletrizado. E é
justamente aqui onde uma palavra é suprimida. Mirem. No original, Machado nos
diz: “Conceição entrou na sala, arrastando as chinelinhas da alcova”. Nas
traduções a senhora assim nos vem: “Concepción entró en la sala, arrastraba las
chinelas”; “Concepción entró en la sala, arrastrando sus chinelas”. Que
diferença! Os leitores nas duas traduções perderam a alcova.
Ou no contexto do
conto, perderam a sua promessa. Como um parágrafo de esperança.
*
Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da
redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações
Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici, “Soledad no Recife” e
“Dicionário amoroso de Recife”. Tem
inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao ensino em colégios brasileiros.
Esta maravilhosa análise já esteve presente por aqui. Imaginem o distanciamento do original dessas duas mudanças conduzidas por traduções bem intencionadas? E as amputações que pretendem facilitar o entendimento da leitura? É lei nacional. No lugar de elevar os leitores, o acordo é abaixar o que está escrito. Melhor nem imaginar.
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