Entre o Dunquerque e a
cristaleira
* Por Daniel Santos
Sim,
sim, havia uma velha na casa. Uma velha muito mais velha que as outras, tias e
avós. Quando forçam a memória, os descendentes lembram dela errando pelos
aposentos, atrapalhando a velocidade de todos.
Primeiro,
esgueirava-se por entre a mobília, mas a mobília foi acabando e a tal passou a
andar ressabiada, rente às paredes. E, assim, foi sendo escorraçada para os
fundos, onde, não se sabe quando, desapareceu.
Ali,
depois da cozinha e da copa, havia apenas o banheiro dos empregados com
infiltrações nas paredes, o limo tingindo a cal em torno da pia, e o quarto
onde atulhavam-se peças de mobília sem mais serventia.
Será
que... Os descendentes foram ao quarto em busca de indícios. Por minutos, forçaram
a vista e desconfiaram de algo entre o dunquerque e a cristaleira, algo miúdo e
ressequido que talvez fosse um corpo humano.
Aproximaram-se
mais e deram com olhinhos duros de mágoa!
Não gemeu nem nada, mas sua imobilidade assustava. Ao reconhecerem nela
traços que eles herdaram, houve um berro – assombroso berro do remorso.
* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e
redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de
São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou
"A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e
"Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o
romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para
obras em fase de conclusão, em 2001.
Mumificou-se, feito lagartixa ressequida, que mal emana odor. Assombroso, mas ainda assim possível. Velhos são menos do que objetos, pois estes pelo menos têm serventia.
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