Nosso maior desafio
O maior desafio do
escritor, mesmo que não se conscientize disso, é transformar – tendo por “ferramenta”
apenas esse instrumento frágil e rústico, que é a palavra – a feiúra mais
explícita em suprema beleza. O contrário é facílimo e não envolve maior (ou
nenhuma) complexidade. Ademais, essa transformação precisa guardar
verossimilhança, ser factível e lógica, para que seja crível. Poucos conseguem
essa façanha, notadamente na ficção. Praticamente todo romance, conto, novela
ou mesmo peça teatral e roteiro de cinema, trata do confronto multimilenar do
mal com o bem, do egoísmo com a solidariedade, do belo com o feio.
A fórmula é sempre,
praticamente, a mesma, embora as circunstâncias e os desfechos sejam diferentes
Todo enredo tem um vilão, que apronta poucas
e boas para os heróis da história – via de regra um casal que teima por separar
– mas que, no final das contas, após superar mil e uma armadilhas e tramóias,
acabam por triunfar e ser “felizes para sempre”. Óbvio que a vida raramente é
assim. E nela duas palavras não cabem: “nunca” e “sempre”. O autor tem o
cuidado (salvo uma ou outra exceção) de urdir um destino tenebroso para o
vilão, punindo-o de alguma forma (ou segregando-o da comunidade, ou fazendo com
que seja preso, ou matando-o no final, isso varia).
Há quem veja beleza
nessas histórias. Também vejo, mas somente em algumas, nas que guardam
verossimilhança. Vejo em minha atividade (e em mim mesmo, óbvio) enorme contradição. O escritor
(e, por extensão, qualquer artista) tem como meta suprema descrever, da forma
melhor que consiga, (ou, o que é mais difícil, criar) beleza. No entanto, esta
raramente freqüenta suas obras e, quando se faz presente, é apenas
incidentalmente. Prevalecem, invariavelmente, a feiúra, a deformidade
(sobretudo a moral), a violência e a maldade. Será que a humanidade está
perdendo, não somente o senso ético (este cada vez menor), mas também o
estético? O que aconteceria ao mundo caso isso, desgraçadamente, viesse a se
verificar?
Otto Maria Carpeaux
tratou dessa possibilidade, em um instigante ensaio, intitulado “A idéia de
universidade e as idéias das classes médias”, publicado no livro “A cinza do
Purgatório”. Escreveu: “Poderia chegar o dia em que ninguém compreenderia mais
as fórmulas nem os poemas; em que os quadros de Rembrandt seriam pedaços de telas
e as partituras de Beethoven farrapos de papel, dia de barbaria, em que a historia
humana se transformaria, pela sucessão de desgraças, num formigueiro mal
organizado. E este dia talvez já esteja mais próximo do que realmente pensamos”
Deus que nos livre disso ocorrer. O que
já é feio, se tornaria horrível!
Escrever sobre beleza –
ou tentando descrever a existente ou, o que muitíssimo mais complexo, tentando
criá-la – é tarefa de gigantes estéticos e a maioria foge desse desafio, até
inconscientemente. Por que? Porque para identificá-la, descrevê-la ou criá-la precisamos
tê-la entranhada em nós. O filósofo norte-americano Ralph Waldo Emerson fez a
seguinte constatação: “Podemos viajar por todo o mundo em busca do que é belo,
mas se já não o trouxermos conosco, nunca o encontraremos”. Há pessoas, e não
são poucas, que são condicionadas desde tenra infância, por ambientes violentos
e horrorosos em que são criadas, a enxergarem feiúra em tudo e, em
contrapartida, a desconfiarem da beleza e tentarem destruí-la. Conheço muitas,
mas muitas mesmo com esse tipo de comportamento. Duvido que o leitor também não
conheça alguém assim. Elas estão por toda a parte.
Ademais, a beleza é
sumamente efêmera, eventual, episódica e passageira. Já a feiúra, salvo
raríssimas exceções, é permanente e definitiva. E tende a acentuar-se à medida
que o tempo passa. Ou não é o que ocorre? Uma mulher belíssima, enquanto menina,
adolescente ou na maturidade, por exemplo, em poucos anos, por uma série de
razões, mas principalmente as biológicas, irá envelhecer, murchar e, enfim,
enfeiar. O processo contrário, todavia, nunca ocorre. A feia não vai se
tornando bonita à medida que o tempo passa, até chegar à glória da suprema
beleza. Há flores tão belas que diante delas chegamos a perder o fôlego,
tamanho é o prazer estético que nos despertam e tão grande é a nossa emoção. Contudo,
num piscar de olhos, perdem o viço, murcham, secam e morrem. Até paisagens de
extrema beleza podem se degradar pela ação dos elementos ou, o que é mais
comum, pela atitude estúpida do homem.
Os escritores, não
raro, fogem do belo por este até prescindir de sua intervenção para conservar
essa característica. Foi o que William Shakespeare constatou, quando escreveu: “Uma
coisa bela persuade por si mesma, sem necessidade de um orador”. E estava
errado? Claro que não! Daí minha convicção de que o maior desafio do escritor
(fica implícito que também o é de qualquer outro artista) é transformar a
feiúra em beleza, mas com verossimilhança e sem descambar para a pieguice.
A esse propósito, a
declaração que mais me impressionou é essa, do escritor Markus Susak, colocada
na boca de um dos personagens do marcante romance (que recomendo, sem
pestanejar) “A menina que roubava livros: “Estou sempre achando seres humanos
no que eles têm de melhor e de pior. Vejo sua feiúra e sua beleza e me pergunto:
como uma coisa pode ser as duas?”. Sim, como?Apesar dos pesares, concordo, e
convictamente, com Fedor Dostoievski,
que garantiu: “A beleza salvará o mundo!!!!”
Boa leitura.
O Editor
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Estava pensando que o escultor faz o belo. Pelo menos tira da pedra formas belas.
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