Inventário de perdas
* Por
Aleilton Fonseca
O silêncio do delator,
romance de José Nêumanne Pinto, retoma a linha ficcional do inventário
político-ideológico da geração 60, no Brasil, que enfrentou a ditadura militar
(1964-1985), respirou a arte pop e o cinema, embalou-se no rock-and-roll e na
MPB, aplaudiu as barricadas estudantis parisienses e adotou os comportamentos
da contracultura. Coube à turma mais intelectualizada dessa geração -
jornalistas, escritores, artistas, professores, militantes políticos -
escrever, discutir e viver a memória daquela época ao mesmo tempo rica, confusa
e conturbada. Na década de 80, com a abertura política, as livrarias foram
inundadas por dezenas de livros de depoimentos, poesia e ficção, escritos por
autores oriundos dos grupos que sofreram as agruras dos anos de chumbo da
ditadura. Mas nenhum deles tornou-se o livro definitivo daquela geração.
O silêncio do delator
conta a trajetória de João Miguel, um morto que fala sem peias durante todo o
seu velório. Só o narrador tem acesso à consciência do defunto e inscreve sua
fala no tecido ficcional. Nesta condição, João Miguel promete esclarecer a sua
história e revelar os segredos de seus companheiros: ''Agora, sim, posso falar
de nosso malogro''.
Nêumanne diferencia-se
da maioria dos autores dessa temática. Ele adota uma estratégia francamente
ficcional, ao dar o poder de fala a um morto, em pleno velório, fazendo-o
dialogar com o narrador principal, espécie de moderador dos diversos discursos
que contracenam ao longo do enredo. Ora, essa aplicação contemporânea do
célebre procedimento machadiano, em Memórias póstumas de Brás Cubas (1881),
surte um excelente efeito operatório, abrindo espaço para discursos
desabusados, versões e contradições, reflexões político-sociológicas e,
sobretudo, observações metanarrativas. São divertidas e pertinentes as
intromissões do morto na escrita do romance, ao fazer reparos e comentários
jocosos e analisar detalhes, criticando a técnica do narrador principal.
A ironia e a
auto-ironia dão tempero ao relato, pois permitem a relativização das verdades,
dos ideais, das crenças e das ações individuais e coletivas. Os pretensos
heróis da resistência político-cultural dos anos 60-70 riem de si e de suas
fraquezas e limitações. Um riso angustiado, com uma ironia tragicômica, mas que
compõe um quadro realista, sem idealizações anacrônicas.
Em certo sentido, João
Miguel simboliza o alter-ego coletivo. Nele e com ele, estão mortos os ideais
de sua geração. Já o narrador principal é a outra face desse alter-ego. Se o
narrador-vivo ainda contemporiza com algumas idéias e situações, ao morto,
despido de qualquer chance de ação, cabe as avaliações mais ferinas. Sua fala é
o antídoto da má-consciência que, inadvertidamente, pode persistir nos
discursos e atitudes dos demais, ainda comprometidos com as etiquetas e os
interesses da vida.
Em O silêncio do
delator, a alternância do foco narrativo é fundamental, pois cadencia a trama e
equilibra o pêndulo entre a realidade e a ficção. O diálogo tenso, irônico e
arrevesado dos narradores, o vivo e o morto, proporciona um debate duro e
esclarecedor, traça o perfil ideológico e existencial das personagens,
entremostra seus acertos e equívocos, perdas e ganhos, inconseqüências,
veleidades e contradições.
Este romance é,
sobretudo, um inventário de perdas: da inocência, da crença, do ideal, da certeza.
As personagens persignam-se sobre o morto - símbolo do malogro. A morte expõe
sua trajetória ao lado dos companheiros - e o seu silêncio delata o grande
teatro vivido coletivamente por uma geração paradoxalmente vitoriosa na
derrota.
José Nêumanne Pinto
conduz bem a sua escrita, pois adota, com acerto, os procedimentos ficcionais
que dão relevo aos fatos da realidade, elevando-os a um nível de complexidade e
de significação para além dos registros documentais e jornalísticos. Trata-se
de uma narrativa amarga e pessimista, mas escrita com ironia e humor
desabusado, para desnudar a alma de uma geração que viveu intensamente seus
ideais e suas frustrações, deixando marcas na história social e na cultura do
século 20.
* Aleilton Fonseca é
escritor, Doutor em Letras (USP), professor titular pleno da Universidade
Estadual de Feira de Santana, membro da Academia de Letras da Bahia, da UBE-SP
e do PEN Clube do Brasil.
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