quinta-feira, 20 de março de 2014

O sabor das nuvens

* Por Aleilton Fonseca

Era aquele cheiro quente de biscoitos no forno. Invadir o portão era sempre o sonho, a vontade de ver como se faziam biscoitos, quantas mãos os amassavam, enfornavam, acomodavam nas embalagens coloridas. Mas não podia, que lá sempre havia o homem a vigiar, sozinho, quieto na guarita. Ele se ocupava em ouvir um rádio de pilha, enquanto os nossos olhos escalavam o ar para colher a fumacinha, um sorriso sorrateiro da chaminé multiplicando-se em nuvens baixas. Elas levavam aos arredores de nossas casas as cores silenciosas daquele gosto morninho. Dava-nos vontade de saborear a fábrica inteira.

Era uma enorme casa. O ruído dos geradores era o aviso, o coração da fábrica pulsava: distraía-nos como um motor de nave em vôo, zumbindo nos ouvidos curiosos. Mas, o portão! Sempre fechado aos estranhos — estranho, eu?! —, a guarita e seu morador solitário, escutando aquelas notícias. Seu mundo saía do rádio e ali mesmo se esvaía. E as letras vermelhas, iradas, gritavam:
 
ENTRADA PROIBIDA
 
Agora, não: eu ia vencendo portão adentro, de repente escancarado; nem portão que era, mas a entrada que me chamava sem impor condições:
— Ei, o senhor está procurando alguma coisa? — um menino me atalhou.
— Biscoitos! — respondi, sem deixar escapar-me o fio de meu próprio tempo.
— No meio do mato? — ele insistiu.
— Não, no meio da fábrica.
— ?!
— Huummm. Esse cheiro! — murmurei, sentindo-me orvalhar nos lábios.
— Cheiro de mato e insetos — ele pontuou-se no real.
— Não, biscoitos quentinhos.
— ?!
— Veja a fumaça da chaminé.

O menino olhou para as nuvens, que se iam altas e ensolaradas, me encarou e, distanciando-se um pouco, me observava de um certo soslaio, bem que desconfiava de mim. Eu estava um doido? Ambos fizemos pausas, entrecortadas de olhares esconsos. E, nesse diálogo, já de somente olhar, nos tangenciávamos, nos recortes do tempo. Cada qual seus quais, com suas estampas, em que a vida pode ser revisitada.
Era um menino e sua bicicleta, nas rodas de seu presente. Eu, então... Ele encostou o brinquedo numa estaca sobrevivente, entrou na fábrica saltando por sobre um resto de parede. E me disse que seu avô trabalhara ali antigamente. Ao se aproximar, ele afastou as ramagens tenras, por entre as touceiras de mato. Colheu um melão-de-são-caetano e o apertou entre os dedos, as partes se abrindo em estrela, expondo as carnes vivas e sementes do fruto silvestre. Era bonito, desde menino eu achava: pena que não se prestava a melhor degustação, só servia para alimentar o sonho. Aquele fruto viera do passado, entrando portão adentro para tomar conta de tudo. Eram as ramagens da mão do tempo.
— Olhe isso!

O menino tocou o pé na parede e me disse que estava tudo podre. O telhado viera abaixo, os cupins devoraram as madeiras. Eu ouvia o relato, mas não acompanhava seus olhos. Ouvia mesmo era a engrenagem trabalhando. As máquinas que nunca vi, apenas as imaginara, pelo som do trabalho que os cobogós me avisavam. Dois tijolos saltaram, quebrando-se sobre o capim rasteiro que assoalhava o lugar. Eram dois tijolos que se esmigalhavam, mas eu os revia intactos, na parede firme, na cor do óxido de terra, sempre novos.

O menino montou de um salto, saiu cavalgando a bicicleta, ia-se equilibrado. Segui atrás, sem saber ao certo por que o acompanhava. Lá adiante, vi quando ele entrou num terreiro, a casa simples mais ao fundo. Continuei caminhando, até me acercar da grade baixa do portão. Na frente da casa compunham-se pequenos canteiros de flores, acenavam-me ali nessa busca as rosas e seus espinhos. Havia uma aroeira jovem, sob a qual um banco de madeira convidava à sombra:
— Ó de casa! — me arrisquei a novo rumo.

Um homem de boa idade assomou à porta, logo me averiguava as feições, certamente para ver se me conhecia de outro tempo ou lugar. Ele veio ao meu encontro. Senti o seu esforço a esmo: não, ele não me conhecia. Eu desatei a cena:
— Boa tarde. O senhor é seu...?
—  Ivo, eu mesmo. Boa tarde. É alguma coisa? — ele respondeu e perguntou, reticente.
— Nada. Ia passando, seu neto me disse que o senhor trabalhou na antiga fábrica, então.
— Ah, sim, trabalhei, né? Mas isso faz muitos anos, pra lá de uns trinta!  — ele informou, enquanto apontava o banco de madeira, num convite.
— É, faz tempo! — comentei, enquanto nos sentávamos à sombra.
— O senhor veja: o tempo passa, leva tudo. Leva a gente também — ele filosofou, buscando apoio nas nuvens.
— O senhor se importaria de me falar um pouco daquele tempo, da fábrica, como era antigamente?

A primeira frase de sua resposta foi um gesto silencioso, de quase em quase, desde seus olhos para os meus. Depois seu olhar fugiu para os galhos da aroeira que nos assistia. Esse seu Ivo, avô do menino, estava já encabulado. Eu lhe trazia aquele assunto morto, num repente voltando à luz da tarde. Ele estava surpreso. Depois de se cultivar absorto, num quase sorriso, ele murmurou,  com jeito de certa tristeza:
— Ah, não sei lhe contar, não. Não sei de lá, nada.
— Mas, e o serviço, lá dentro? — eu quis insistir.
— Lá dentro, não lembro.
— Mas se o senhor trabalhou lá?!
— Mas eu só trabalhava fora.
— Ah — murmurei, desapontado.
— Quem é o senhor? — ele reverteu a entrevista, mas já eu desanimara.

Fiquei de pé, olhei a aroeira tranqüila, ele também se levantou. O menino vinha de volta, os olhos acesos em nossa direção.
— Contou a ele, vô? — disse, com o ar orgulhoso.
— O quê?
—  Que o senhor era vigia da fábrica?

Para mim, esta revelação do menino, diante da fala vazia do seu avô. Meio a contragosto, o velho esfregou as mãos, com os dedos entrelaçados, e confirmou:
— Eu era só mesmo vigia.

Os três ficamos calados. Eu reconhecia naquele homem a função que nos impedia de alimentar a curiosidade, de nos arriscar à prova de alguns biscoitos. Ele ficava de guarda na guarita para que os meninos vadios não entrassem. No seu sem jeito, ele confessava isso, meio que pesaroso, até mesmo descontente. Restava-nos aquele silêncio em branco.

Então eu cumprimentei o velho com um gesto e disse “até logo”. Aquilo era mesmo um adeus. Ele, cabisbaixo, nem respondeu. Segui pelo caminho de barro, sem ânimo sequer de olhar para trás. De repente, ouvi que o menino me seguia, em meu rumo direto de volta à fábrica. Meus olhos ainda iam cheios das imagens que aquele avô não pudera me contar. Toda a fábrica para ele resumia-se à mínima guarita, o tamanho exato de sua história. Eu me senti pleno, tinha a fábrica inteira dentro de meus olhos. E agora ia seguindo, o menino guiando, sem palavras quais que fossem.
— Essa fábrica foi importante aqui, o senhor sabe? — ele se esforçava para preencher a página que o seu avô rasgara sem querer.

Eu fui seguindo pelo acostamento da pista recém-asfaltada, enquanto o menino me acompanhava, pedalando devagar. Aproximei-me do velho prédio e agora eu via de fato as ramagens que invadiam os restos das paredes, entrando e saindo pelos cobogós sobreviventes.

De novo, entrei pelo vão aberto das ruínas da guarita onde ficava o vigia: era a boca do tempo que tudo engolira. E percorri aquele mapa da fábrica, um debucho antigo perdido nas memórias envelhecidas de uns e sepultadas de outros. Eu rabiscava as imagens, preenchendo-me de todos os talvezes. Riscava por onde fosse que ficava cada máquina, onde era o forno, onde se empacotava, tudo agora um ex-existir das coisas e dos gestos. Os operários de novo a postos, suas vozes e passos abafados pela vibração das máquinas. Quantas vezes eu sonhara ser um deles! Dentro de mim a massa ia engrossando, os biscoitos tomando forma e daí ao forno, saindo de lá quentinhos para os pacotes e para as latas.

Eu não podia me perder daquele cheiro. Eu precisava me repor no saber experiente que a vida desbota e destrata, nas rimas certas do texto, a súmula do sim e do nada, as respostas que a gente colhe como frutos de safra no pomar. Estou aqui, mas cheguei tarde, contudo em data aprazada: em vez de massa, preparo um outro tipo de fermento.

O relógio sumiu de minha rota, eu me vi num ponto suspenso, as reticências entre duas vírgulas absortas, antes de assinar aquela sentença. Eu tinha de reconhecer: três gerações, o avô, eu e o menino vivíamos cada um sua própria alegoria, cada qual a mais plausível e incerta. Em cada um de nós havia uma fábrica diferente brotando de dentro do mato, que invadia os nossos olhos e os nossos dias. Dos três sobreviventes do sonho, apenas eu tinha pena e papel; e sabia sentir as cores, o gosto e o sabor das nuvens. Tudo sobrevive nos sulcos que as letras escavam sobre o mudo pergaminho. Debaixo dos riscos, sobrevivem as demais escritas.

Eis a fábrica. Entrei de novo, sem licença. Eu andava a esmo, pelo meio do salão de trabalho, tropeçando nos matos rasteiros. Eu só queria repor as peças em seus lugares, ligar as máquinas, aquecer o forno e despertar a chaminé. O menino de novo me observava, talvez curioso ante minha empreitada. Eu perscrutava-lhe uma pergunta que ele não alcançou formular. Eu, também funcionário, em certo depois, minha função era a última de todas. Enfim, eu agora a exercia. Ouvi que a fábrica apitava e me senti arrepiar inteiro. Estava findo esse turno de trabalho. Então eu fui saindo.
— Esta fábrica está morta.

O menino disse isto e retomou sua bicicleta. Deu uma última olhada, foi-se a guiar para longe, fazendo girar o tempo presente. Era já o cair da tarde; e dentro de mim o apito da fábrica chorava. Eu via de novo a fumaça formando nuvens e provava o cheiro morno dos biscoitos. Continuei caminhando, sem olhar para trás, os matos já não me incomodavam. Era hora, e eu ia saindo pelo mesmo portão aberto, por onde as minhas lágrimas passavam.

* Aleilton Fonseca é escritor, Doutor em Letras (USP), professor titular pleno da Universidade Estadual de Feira de Santana, membro da Academia de Letras da Bahia, da UBE-SP e do PEN Clube do Brasil.

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