sábado, 29 de março de 2014

O último corvo de César

* Por Emílio de Menezes

Estes "Salpicos", em geral são rimados, mas a rima, coisa de poeta, participa da natureza deste. É inconstante e indolente. Até a última hora, não nos chegaram os versos esperados e resolvemos preencher a seção de qualquer maneira. Há sempre numa redação coisas inúteis, insultas e mal vernaculizadas, que ficam a entulhar gavetas e armários para os dias fatais de falta de matéria. (Falta rara, felizmente, cá por casa). São colaborações anônimas e gratuitas de vários gêneros e sabores vários.

Numa devassa pelos móveis, com todos os rigores de busca e apreensão com que Aurelino costuma arranjar as provas de uma conspirata, resolvemos tudo e demos com essas tiras que aí vão, em súmula, já amarelentas, como as faces semitapuias do Sr. Pires Ferreira

0 que aí segue perdeu em graça o que julgou ganhar em filosofia e perdeu em filosofia o mesmo que deixou de ganhar em graça. É uma velha anedota de cunho autenticamente histórico e que, apesar da falta de graça e ausência de filosofia, talvez possa, com retoques, ter uma aplicação de atualidade. Vamos resumí-la. Como sabem, o corvo, na Europa, só tem de comum com o nosso urubu, malandro ou não-malandro, a cor. É um conirostro palrador que, dentro da plumagem hemeterícamente escura, e sem os tons verde-amarelos da alma jacobina do Sr. Lopes Trovão e do nosso papagaio, fala como este e como este aprende coisas.

Quando César voltava triunfalmente das Gálias, um patriota qualquer, desses que amam o oportuno fio da espada, conseguiu ensinar o seu corvo predileto que, por sinal, não era de todo negro, a dizer esta frase: "Eu te saúdo, César vencedor!" César, ao passar ficou maravilhado ante o prodígio e fez imediatamente adquirir o plumitivo exaltador da sua onipotência e da sua vaidade. Foi uma praga. Quem tivesse corvo à mão, entrava logo a ensinar-lhe aquelas palavras excelentemente glorificadoras. E César começou a comprar corvos, mas tantos comprou que já se lhe entupiam as oiças com o coro infernal das glorificações.

Um mísero sapateiro, cuja vida lhe corria pior que a do Sr. Cunha Vasconcelos nos tempos de hoje, concentrou todas as esperanças de salvação financeira, tal qual Pernambuco, num corvo que filha amorosa lhe mandara de longes terras. Todos os dias, por vinte ou cem vezes, pacientemente repetia as palavras sagradas e o corvo ouvia.

Mantinha-se fúnebre, no seu crocitar primitivo, sem mostras de entender patavina daquilo, na mesma pirronice com que o Bezerra não quer entender de agricultura.

De todas as vezes, o velho sapateiro se erguia desolado, abandonava a sovela e o cerol e exclamava: "Perdi meu tempo e meu trabalho!" e o corvo moita.

Passam-se as semanas, correm os meses. "Eu te saúdo, César vencedor!" - "Perdi meu tempo e meu trabalho!

Acontece, porém, que César, passando certo dia pela tenda do gaspeador de botas, com o ruído das aclamações, o corvo, até então mudo como o índio no Senado, despertou e, por singular coincidência, pronunciou inconscientemente a saudação por tanto tempo ouvida.

César, já cansado de comprar corvos, não ligou. Mas o corvo tinha decorado também o resto e grasnou: "Perdi meu tempo e meu trabalho!" 0 vencedor das Gálias retrocedeu e foi esse o último corvo que adquiriu.

Quem será o último corvo de César?

Fonte:
Obra Reunida, de Emílio de Menezes, Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1980.


* Jornalista e poeta parnasiano, imortal da Academia Brasileira de Letras

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