O último corvo de César
* Por
Emílio de Menezes
Estes
"Salpicos", em geral são rimados, mas a rima, coisa de poeta,
participa da natureza deste. É inconstante e indolente. Até a última hora, não
nos chegaram os versos esperados e resolvemos preencher a seção de qualquer
maneira. Há sempre numa redação coisas inúteis, insultas e mal vernaculizadas,
que ficam a entulhar gavetas e armários para os dias fatais de falta de
matéria. (Falta rara, felizmente, cá por casa). São colaborações anônimas e
gratuitas de vários gêneros e sabores vários.
Numa devassa pelos
móveis, com todos os rigores de busca e apreensão com que Aurelino costuma
arranjar as provas de uma conspirata, resolvemos tudo e demos com essas tiras
que aí vão, em súmula, já amarelentas, como as faces semitapuias do Sr. Pires
Ferreira
0 que aí segue perdeu
em graça o que julgou ganhar em filosofia e perdeu em filosofia o mesmo que
deixou de ganhar em graça. É uma velha anedota de cunho autenticamente
histórico e que, apesar da falta de graça e ausência de filosofia, talvez
possa, com retoques, ter uma aplicação de atualidade. Vamos resumí-la. Como
sabem, o corvo, na Europa, só tem de comum com o nosso urubu, malandro ou
não-malandro, a cor. É um conirostro palrador que, dentro da plumagem
hemeterícamente escura, e sem os tons verde-amarelos da alma jacobina do Sr.
Lopes Trovão e do nosso papagaio, fala como este e como este aprende coisas.
Quando César voltava
triunfalmente das Gálias, um patriota qualquer, desses que amam o oportuno fio
da espada, conseguiu ensinar o seu corvo predileto que, por sinal, não era de
todo negro, a dizer esta frase: "Eu te saúdo, César vencedor!" César,
ao passar ficou maravilhado ante o prodígio e fez imediatamente adquirir o
plumitivo exaltador da sua onipotência e da sua vaidade. Foi uma praga. Quem tivesse
corvo à mão, entrava logo a ensinar-lhe aquelas palavras excelentemente
glorificadoras. E César começou a comprar corvos, mas tantos comprou que já se
lhe entupiam as oiças com o coro infernal das glorificações.
Um mísero sapateiro,
cuja vida lhe corria pior que a do Sr. Cunha Vasconcelos nos tempos de hoje,
concentrou todas as esperanças de salvação financeira, tal qual Pernambuco, num
corvo que filha amorosa lhe mandara de longes terras. Todos os dias, por vinte
ou cem vezes, pacientemente repetia as palavras sagradas e o corvo ouvia.
Mantinha-se fúnebre, no
seu crocitar primitivo, sem mostras de entender patavina daquilo, na mesma
pirronice com que o Bezerra não quer entender de agricultura.
De todas as vezes, o
velho sapateiro se erguia desolado, abandonava a sovela e o cerol e exclamava:
"Perdi meu tempo e meu trabalho!" e o corvo moita.
Passam-se as semanas,
correm os meses. "Eu te saúdo, César vencedor!" - "Perdi meu
tempo e meu trabalho!
Acontece, porém, que
César, passando certo dia pela tenda do gaspeador de botas, com o ruído das
aclamações, o corvo, até então mudo como o índio no Senado, despertou e, por
singular coincidência, pronunciou inconscientemente a saudação por tanto tempo
ouvida.
César, já cansado de
comprar corvos, não ligou. Mas o corvo tinha decorado também o resto e grasnou:
"Perdi meu tempo e meu trabalho!" 0 vencedor das Gálias retrocedeu e
foi esse o último corvo que adquiriu.
Quem será o último
corvo de César?
Fonte:
Obra Reunida, de Emílio
de Menezes, Rio de Janeiro: Livraria José Olympio, 1980.
* Jornalista
e poeta parnasiano, imortal da Academia Brasileira de Letras
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