Sobre o filme de Lars Von Trier
* Por
Marco Albertim
Ninfomaníaca é um drama
épico; não é o que pode ser chamado de um filme belo, com narrativa linear. O
recurso a recuos no tempo enriquece as sequências, confere densidade a um
discurso que se dá sem a ajuda de uma trilha sonora também com notas musicais
severas.
É uma realização
polêmica porque é explícita. A abordagem da vida pregressa de Joe – Charlotte
Gainsbourg –, de sua conturbada sexualidade, não é chula nem vulgar; é invasiva
na medida em que a personagem se expõe a seu derradeiro e definitivo terapeuta –
Seligman – Stellan Skarsgärd. Por ser longo, divide-se em dois volumes, como
num extenso romance; cada volume divide-se em capítulos. A unicidade entre um e
outro dá-se no cômodo onde Seligman ouve o relato de Joe, depois de encontrá-la
deitada num labirinto de ruelas desertas entre prédios de paredes sombrias; com
hematomas e equimoses no corpo. E consolida-se ao longo da narrativa, com
recuos a sequências já conhecidas da infância e da adolescência de Joe. A
unicidade entre os dois volumes tem seu ápice no desfecho. Joe, que contara sua
vida a outros, não evitara a excitação em cada um dos interlocutores. Em
Seligman, entrevê a paciência de ser ouvida, seguida de explicações do
intelectual solitário; explicações para todos os enigmas, inclusive os do sexo.
Seligman confessa-se inapto para o sexo já na altura dos mais de cinquenta anos
de vida; não hesita em se chamar de assexual. Ao final de um boa-noite
prosaico, retorna ao quarto onde repousa a inusitada hóspede; volta crendo se
redimir da apatia da rotina sem o uso do sexo com a parceria de alguém;
bolina-se antes de tocar em Joe. Não... – ela defende-se. Dá o único testemunho
de recusa ao sexo. Com a mesma Beretta que tomara de P – Mia Goth –, criatura
sua que se volta contra, atira em Seligman. Em nenhum momento o roteiro e a
direção do dinamarquês Lars Von Trier, deixa entrever a tragicidade que envolve
a morte de Seligman. Joe já se deixara violentar, mesmo com as nádegas
chicoteadas por um assustador profissional – K – Jamie Bell. Sua recusa é um
indício robusto de que, dali em diante, tem começo a recuperação do vício
sexual.
Seligman não é
terapeuta, inda que se mostre com mais habilidade para o ofício; bem mais que a
outra terapia a que Joe se submetera, integrando um círculo de fêmeas com a
mesma mania. Com ele, não ouve censuras, a não ser quando conta que estimulara
a difícil ereção de um pedófilo, com referências a um episódio fictício de
pedofilia. Ela, então, socorre-o com o coito bucal. Com as outras, que não se
dizem ninfomaníacas e sim viciadas em sexo, rebela-se contra a ideologia que
anima o círculo, descobrindo que estão ali para se livrar da prática tão
somente "para não enojar a burguesia". E confessa-se orgulhosa de sua
sexualidade corrosiva.
Joe não é perversa, é
autodestrutiva. Alicia P para trabalhar numa casa cujos profissionais não
poupam requintes para reavivar taras ou descobri-las em perfis ainda não
definidos. P, sua criatura, supera-a com outros dotes, mostra-se cruel e
assassina em potencial. É dela a Beretta cujo uso torna-se letal em Joe. Jerome
– Shia Labeoufe – fora casado com Joe. Frequentando a casa dos requintes,
junta-se a P na frieza do trato e na corrosão do sexo. Na ruela deserta, Joe
saca a Beretta, a arma falha seguidas vezes depois de mirar para a cabeça do
ex-marido e pai de seu único filho. Jerome espanca-a sem dó e com o silêncio
cúmplice de P. Em seguida, com lascívia sádica, faz uso de P de um lado e de
outro. O roteiro deixa implícito que o código sem código no corpo da então
adolescente Joe – Preencha-me em todos os buracos –, cospe em seu rosto ao
explicitar a condenação de nunca mais fazer uso dele. A perversão de P
mostra-se sem rebuços, quando ela urina no rosto de sua criadora; o ato é
mostrado em plano detalhe, para conferir a frieza sádica de P. E P, diga-se, no
viço dos dezoito anos de vida, obtivera de Joe não só o maneirismo do ofício,
mas a graça do corpo.
A fotografia de
Ninfomaníaca não tem seus pontos altos nas performances do sexo. Quando Joe
descobre que Jerome é mais que um cliente de P, foge para as montanhas. O
perfil de seu corpo esguio se confunde com galhos secos de árvores morrendo.
Joe é parte da paisagem morta. O drama no juízo de Joe é o mesmo das moléculas
em atrito surdo nos galhos mortos.
*Jornalista e escritor.
Trabalhou no Jornal do Commércio e Diário de Pernambuco, ambos de Recife.
Escreveu contos para o sítio espanhol La Insignia. Em 2006, foi ganhador do
concurso nacional de contos “Osman Lins”. Em 2008, obteve Menção Honrosa em
concurso do Conselho Municipal de Política Cultural do Recife. A convite,
integra as coletâneas “Panorâmica do Conto em Pernambuco” e “Contos de Natal”.
Tem três livros de contos e um romance.
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