Du: a fiel escudeira
* Por Mara Narciso
Uma amiga da minha avó Du a indicou. Morava na Rua São Francisco. Era de
São Pedro das Garças, mas tinha sido dada aos padrinhos que a criaram,
trabalhando desde criança numa roça em Juramento. Era uma vida de
serviço penoso e sofrido. Não brincava, ainda assim costumava lembrar-se com
ternura das rezas e das comidas. Havia vizinhos de quem ela gostava. Após a
morte do padrinho, já na cidade de Montes Claros, decidiu-se trabalhar como
doméstica e estudar. Teria 28 anos, não sabia ao certo, pois, quando foi fazer
a matricula, descobriu não ter documentos. No Fórum, fez a declaração da sua
existência: “Eu me chamo Maria dos Anjos Pires”. Tinha nascido em 10 de julho
de 1946, mas a data poderia não estar certa. Chegou à nossa casa para fazer
todo o serviço, e gostava de ser chamada Du. Era alta, forte, dentes tratados,
seios fartos, pele escura e uma marca de queimadura na perna direita.
Morávamos em um apartamentinho simples e decadente no centro de Montes
Claros. Minha irmã Carla tinha cinco anos, eu tinha 13 e meu irmão Helder 14
anos. Meu pai Alcides tinha um emprego de contador e Milena, a minha mãe,
estudava cursinho para Medicina. No começo, Du preferia não sair para fazer
compras, mas com o tempo tomou gosto e fazia umas feiras ótimas, pois gostava
do mercado. Iniciou os estudos, e no final do dia, muito asseada e cheirosa, ia
para o Grupo Escolar. Fez isso durante três anos, mas tinha dificuldade com as
letras. Cozinhava simples e bem, produzindo os melhores arroz e ovo frito na
água, com molho de tomate, do mundo. Desenvolveu muitas outras habilidades
culinárias, sofisticando-se. Boa de papo, é gente que sabe ouvir e aconselhar.
Na hora do descanso, contava casos da roça até altas horas, e vaidosa, cuidava
muito do cabelo, alisando-o, colocando rolinho, comprando roupas novas,
passando esmalte nas unhas. Saia muito pouco, não recebia amigos e raramente ia
visitar a mãe. Tinha dois parentes que às vezes apareciam: um irmão e uma
meio-irmã.
O apartamento em que morávamos era de fundos, ficávamos emparedados sem
poder ver a rua, assim, tínhamos o costume de subir no tanque da área de
serviço para ver uma nesga do céu, e termos contato com o mundo externo,
inclusive os operários da construção do Cine Montes Claros. Foi nessa época que
Du conheceu Walter e começou a namorá-lo. O namoro era cedo da noite, na porta
do prédio, e algumas vezes, estive com eles. Ele era negro, estatura mediana,
meia-idade, articulado, dizia ser solteiro e ter nascido no Paraná. Sempre
aparecia trazendo consigo um rádio de pilhas branco, que ficava ligado o tempo
todo. Era o ano de 1970. Numa ocasião, ele deu a Du uma sombrinha de presente.
Mas, ela acabou descobrindo que ele tinha uma mulher, e seguindo seus
princípios éticos, foi até a casa, devolveu o presente e nunca mais viu o
rapaz.
Quando a barriga começou a crescer, a minha avó Du a perguntou se ela
estava grávida, e ela negou, afirmando não se lembrar de nada, a menos que
tivessem dado a ela alguma bebida. Milena marcou o pré-natal com a Dra Maria de
Jesus Santos Rametta, e ela foi. Porém, envergonhada, saiu antes de ser
examinada. Certa madrugada do dia nove de novembro de 1970 foi ao quarto de mãe
queixando-se de dor forte, porém, alegando ser cólica, pois tinha menstruado.
Mãe a ajudou a trocar de roupa, pegou as roupinhas da criança, cujo enxoval
estava pronto a sua revelia, chamou um táxi e a levou à Santa Casa. Foi quando
nasceu Kátia Vanessa Pires, recebida por nós com muito amor.
Foi batizada pelo meu irmão Helder e eu. Gordinha e esperta
foi a menina que vi andar com maior precocidade: oito meses e três semanas.
Mudamos da Rua Carlos Gomes para a Avenida Santos Dumont, e, com Kátia no colo,
Du não pôde ajudar direito na mudança, o que gerou má vontade em meu pai, que
passou a perseguir a menina. Isso foi suplantado pelo amor que mãe sempre lhe
deu, a criando como filha, com todo afeto e consideração dados por nós, tios e
primos.
A minha mãe se formou médica, e a vida de todo mundo melhorou. Construiu
e a família mudou-se para a casa da Rua Santa Rita de Cássia, no Bairro São
José. Pouco antes eu me casei. Naquela casa, Du cuidava de tudo, principalmente
das compras do mercado, ao qual ela ia sozinha, e um carregador trazia. Ao
supermercado, mãe ia com Kátia, que ficava encarregada dos supérfluos. Assim,
foi acostumada com fartura, variedade e coisas finas. Du fazia questão dos
estudos da filha, e Kátia, inteligente e esforçada estudou nas mesmas escolas
que Carla frequentou, como Escola Estadual Dom João Antônio Pimenta e Colégio
Marista São José. Também esteve na Escola Técnica de Montes Claros. Depois fez
Direito na Unimontes e mestrado em Direito Internacional em Santa
Catarina. Trabalha como professora de Direito e advogada.
Muito reservada e caseira, foi Du uma grande companheira e amiga da minha
mãe. Atenta às suas necessidades, não a deixava almoçar ou jantar só,
fazendo-lhe companhia, ouvindo-a, fazendo sugestões, além de cozinhar as coisas
que ela mais gostava. Ficava ali ao seu lado, desde a separação dos meus pais,
para distraí-la e alegrá-la. Mãe contava as coisas do hospital, viam um pouco
de TV, novela e futebol, que Du aprendeu a gostar, e gosta de fato, entendendo
sobre jogadores, jogadas, leis, negociações e campeonatos. Na época da Copa do
Mundo então, era uma grande festa de alegria nas comemorações e choro nas
derrotas.
Ainda que houvesse uma ou outra desavença nesta família de quatro
filhos, dois genros, uma nora, e quatro netos, no geral o ambiente era
harmônico. Heldim, Fernando, Tutu e Maria Fernanda, nesta ordem de idade, tinham
em Du uma outra avó devotada e amorosa. Ela buscava no alto do céu ou no fundo
do mar o que aqueles meninos queriam. Eles a adoram, e corriam para abraçá-la
quando lá chegavam. Ficavam vendo TV e brincando, muito felizes. Na hora do
lanche, cada um queria um alimento, e ela, até sair saía para comprar coisas
para mimá-los.
Mas Milena decide morrer. A fiel escudeira fica numa tristeza de dar
pena. Com a ajuda da sua filha, monta um apartamento no mesmo bairro, para que
não estranhe muito. Os laços permanecem com aquela que foi a grande companhia
da minha mãe nos graves e solitários momentos em que ela chegava exausta do seu
trabalho. Ao seu lado estava sempre presente a figura de Du, a boa amiga para
lhe nutrir o corpo com alimento, e o espírito com amizade, apoio, e atenção.
Uma pessoa que pode não ter mudado a história da cidade, mas que mudou a
história de toda uma família.
*Médica
endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de
Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora
do livro “Segurando a Hiperatividade”
Que bela homenagem à Du, que deve estar muito sensibilizada com este texto. Abraços, Mara.
ResponderExcluirA filha dela gostou, ela no entanto ficou envergonhada com alguns detalhes, mas acabou aprovando todo o conteúdo. Obrigada Marcelo, pelo comentário.
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