O fim do mundo
* Por
Cecília Meireles
A primeira vez que ouvi
falar no fim do mundo, o mundo para mim não tinha nenhum sentido, ainda; de
modo que não me interessava nem o seu começo nem o seu fim. Lembro-me, porém,
vagamente, de umas mulheres nervosas que choravam, meio desgrenhadas, e aludiam
a um cometa que andava pelo céu, responsável pelo acontecimento que elas tanto
temiam.
Nada disso se entendia
comigo: o mundo era delas, o cometa era para elas: nós, crianças, existíamos
apenas para brincar com as flores da goiabeira e as cores do tapete.
Mas, uma noite,
levantaram-me da cama, enrolada num lençol, e, estremunhada, levaram-me à
janela para me apresentarem à força ao temível cometa. Aquilo que até então não
me interessava nada, que nem vencia a preguiça dos meus olhos pareceu-me, de
repente, maravilhoso. Era um pavão branco, pousado no ar, por cima dos
telhados? Era uma noiva, que caminhava pela noite, sozinha, ao encontro da sua
festa? Gostei muito do cometa. Devia sempre haver um cometa no céu, como há
lua, sol, estrelas. Por que as pessoas andavam tão apavoradas? A mim não me
causava medo nenhum.
Ora, o cometa
desapareceu, aqueles que choravam enxugaram os olhos, o mundo não se acabou,
talvez eu tenha ficado um pouco triste - mas que importância tem a tristeza das
crianças?
Passou-se muito tempo.
Aprendi muitas coisas, entre as quais o suposto sentido do mundo. Não duvido de
que o mundo tenha sentido. Deve ter mesmo muitos, inúmeros, pois em redor de
mim as pessoas mais ilustres e sabedoras fazem cada coisa que bem se vê haver
um sentido do mundo peculiar a cada um.
Dizem que o mundo
termina em fevereiro próximo. Ninguém fala em cometa, e é pena, porque eu
gostaria de tornar a ver um cometa, para verificar se a lembrança que conservo
dessa imagem do céu é verdadeira ou inventada pelo sono dos meus olhos naquela
noite já muito antiga.
O mundo vai acabar, e
certamente saberemos qual era o seu verdadeiro sentido. Se valeu a pena que uns
trabalhassem tanto e outros tão pouco. Por que fomos tão sinceros ou tão
hipócritas, tão falsos e tão leais. Por que pensamos tanto em nós mesmos ou só
nos outros. Por que fizemos voto de pobreza ou assaltamos os cofres públicos -
além dos particulares. Por que mentimos tanto, com palavras tão judiciosas.
Tudo isso saberemos e muito mais do que cabe enumerar numa crônica.
Se o fim do mundo for
mesmo em fevereiro, convém pensarmos desde já se utilizamos este dom de viver
da maneira mais digna.
Em muitos pontos da
terra há pessoas, neste momento, pedindo a Deus - dono de todos os mundos - que
trate com benignidade as criaturas que se preparam para encerrar a sua carreira
mortal. Há mesmo alguns místicos - segundo leio - que, na Índia, lançam flores
ao fogo, num rito de adoração.
Enquanto isso, os
planetas assumem os lugares que lhes competem, na ordem do universo, neste
universo de enigmas a que estamos ligados e no qual por vezes nos arrogamos
posições que não temos - insignificantes que somos, na tremenda grandiosidade
total.
Ainda há uns dias a
reflexão e o arrependimento: por que não os utilizaremos? Se o fim do mundo não
for em fevereiro, todos teremos fim, em qualquer mês...
Fonte:
Quatro Vozes. RJ:
Record, 1998.
* Escritora,
professora e uma das mais importantes poetisas brasileiras de todos os tempos
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