O que posso lhe dizer?
* Por Mara Narciso
Uma criança se machuca ao cair. Quem
está próximo corre para acudi-la, acalentá-la, dizer-lhe que não foi nada,
fazer-lhe um carinho e afirmar que logo vai passar. Caso a criança chore,
receita-lhe um remédio, que é recusado, ou oferece-lhe um doce, sinônimo de
amor. Assim, aprendemos que a dor é feia e deve ser minimizada, negada,
esquecida depressa.
As mulheres podem chorar desde que
sejam discretas. Os homens, embora chorem, ocultam sentimentos e desenvolvem
doenças. Dores antes restritas ao setor privado, hoje estão estampadas nos
telejornais, escancaradas para todos verem, pelos mais diversos ângulos, em
closes monumentais, assim como a face da mãe da criança estuprada e morta no
exato instante em que o caixão desce à sepultura. Nesses casos ultra
dramáticos, não é preciso falar nada. Abraçar e chorar juntos é mais autêntico.
Viver é perder e ganhar. Muito se
ganha, e muito se perde. Há períodos em que a conta se equilibra, mas há outros
em que as perdas excedem as coisas boas, e entra-se numa espiral descendente.
De acordo com a medicina holística, quando o equilíbrio corporal e mental se
quebra, segue-se um ciclo até que volte a reequilibrar-se. Há ocasiões em que
tudo desmorona, surgindo pequenas e grandes doenças em sequência, e só depois
de um tempo, a rotina retorna.
As perdas materiais, nas enchentes, por
exemplo, causam consternação, pois cada um se coloca no lugar daquele que se
encontra desalojado, com seus pertences, seu canto e sua segurança destruídos.
Os míseros objetos e o lar dão tranquilidade, e perdê-los todos gera pavor.
Nos roubos e assaltos, quando se tem
perdas financeiras, mas se preserva a vida, outra situação extrema, nem se
cogita em lamentar pelo bem material. Valoriza-se a manutenção da existência e
pronto. Ainda assim, mulheres e crianças choram, e aparecerá alguém que dirá
que aquilo foi quase nada, diante do horror que poderia ter sido. O discurso de
consolo tenta reduzir as perdas. Este é o comportamento social padrão e institucionalizado.
Outras derrotas, como perda de
concurso, para o qual se teve grande empenho, ou ainda as loucuras nas
apresentações das dissertações ou teses, quando a tensão chega a um limite tal
que o doutorando parece estar decidindo o destino do planeta, aparece quem diga
o óbvio para acalmar o cidadão. Não os culpo. A sociedade habituou-se a isso.
As pessoas próximas se sentirão capazes
de quantificar as perdas, sejam bens, ou pessoas que se afastaram, por brigas,
por exemplo, entre irmãos ou amigos ou namorados. “Ah, isso não foi nada. Logo
você irá superar isso”. Morreu alguém, a mãe, por exemplo, depois de uma penosa
enfermidade. Para acalentar o recém-órfão, alguém fala que sabe o que é aquilo,
que também já perdeu a mãe, e se for chato o suficiente, dirá detalhes de como
foi a moléstia que a vitimou, ali mesmo no velório alheio.
As situações de consternação exigem
visita, sendo obrigações sociais prementes. É preciso ir, é urgente se
solidarizar, mas alguns pensam contritos: eu acho que não vou não! O mal de
amor, quando a pessoa é trocada por outra, e está naquela situação de “tremenda
dor-de-cotovelo”, os amigos enchem o ausente de defeitos, dizendo que quem foi
abandonado merece coisa melhor.
No lugar de tentar diminuir a perda, o
que é menosprezar a dor do outro, melhor é garantir o valor daquilo que se foi.
É preferível afirmar que o que foi perdido é imenso, insubstituível,
irrecuperável, e que tem é de chorar mesmo, lamentar-se, gritar, rasgar-se de
dor, até o limite da integridade das suas carnes e sanidade mental. Agarre-se a
isso, faça da dor a sua razão de viver. Sofrer não é feio. Não faça besteira, e
chore o tempo que for necessário. Nada de engolir lágrimas, de inventar força.
Para quê? Desmanche-se de dor, fira-se ao extremo, curta seu luto o tempo que
quiser. Não finja. Ninguém tem o direito de medir o sofrimento alheio. O pranto
consola, enquanto o psiquiatra receita um antidepressivo, medicação com
propriedades terapêuticas garantidas, até que a dor, enfim, desapareça.
*Médica
endocrinologista, jornalista profissional, membro da Academia Feminina de
Letras e do Instituto Histórico e Geográfico, ambos de Montes Claros e autora
do livro “Segurando a Hiperatividade”
O título está perfeito para o desenvolvimento do raciocínio, pródigo de reflexões. As frases feitas, protocolares a cada ocasião, têm sempre pouco efeito prático, mas são ao mesmo tempo imprescindíveis às circunstâncias. Estranha humanidade. Somos humanos, choremos.
ResponderExcluirMesmo falando sozinha, dou um não às convenções que nos proíbem chorar e sentir dor. Eu penso um pouquinho diferente. Obrigada pela passagem gentil de sempre, Marcelo.
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