segunda-feira, 31 de março de 2014

Estranho no ninho


* Por Daniel Santos



Houve antecedentes, sim. Por exemplo, a noite em que despertou esfaimado, e esfaimado voltou à cama. “Falta comida”, alegou a mãe, embora ele soubesse que havia ainda na despensa muito de comer.

E assim foi a vida inteira. Não só a mãe, mas também pai e irmãos excluíam-no, mais por indiferença do que por agressividade. Era como se não reconhecessem nele um semelhante, o que mais tarde evidenciou-se.

De fato, com o tempo, percebeu que seu rosto arredondava-se, enquanto o dos demais estreitava-se como um focinho. Pior, ao contrário dele, glabro, sua família cobria-se de pêlos por todo o corpo, hirsuta!

Entre si, emitiam guinchos como roedores. Algo que constatou na noite em que divertidas risadinhas atraíram-no aos fundos da casa. Lá, a  desconcertante revelação: a família atirava pedacinhos de pão a ... ratos!

Aos ratos, alimento e carinho. A ele, olhares compreensivos que diziam “algum dia, você teria de saber”. E não o escorraçaram. Mas, daí em diante, a porta ficou sempre aberta para quando decidisse partir.

* Jornalista carioca. Trabalhou como repórter e redator nas sucursais de "O Estado de São Paulo" e da "Folha de São Paulo", no Rio de Janeiro, além de "O Globo". Publicou "A filha imperfeita" (poesia, 1995, Editora Arte de Ler) e "Pássaros da mesma gaiola" (contos, 2002, Editora Bruxedo). Com o romance "Ma negresse", ganhou da Biblioteca Nacional uma bolsa para obras em fase de conclusão, em 2001.




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