Desejo contido
* Por Cecília França
Nós a olhávamos de longe, do
outro lado do escritório, enquanto ela conversava e gargalhava com o colega de
setor. Quanto mais enfático era meu amigo em notar sua graciosidade, mais eu
insistia em minimizar sua beleza e refutava minha atração com frases como:
"Por que eu me sentiria atraído justamente por ela, que não tem nada de
especial. Aliás, é muita magra". Mas
seu sorriso paga tudo, pensava, enquanto meu amigo lançava-me um olhar
zombeteiro.
Vínhamos para o trabalho no mesmo
ônibus. Sentávamos, não raramente, um ao lado do outro. Não por amizade, mas
por pura coincidência. Pegava o ônibus um ponto antes do dela, ocorrendo, com
freqüência, de estar ainda vazia a poltrona ao meu lado quando ela entrava.
Diariamente dizia-me um "oi" acompanhado de um sorriso de lábios
abertos que me desarmava.
Não possuía beleza superior à da
maioria das mulheres, porém, seu corpo esguio vestia bem todas as roupas,
especialmente um vestidinho estampado que me deixava angustiado para enxergar
por debaixo dele. Não tinha seios fartos, seus quadris eram assentados, cintura
bem-talhada, colo bonito... Olhava-a com mais freqüência do que deveria, por
isso, meu amigo insistia em ressaltar minha suposta atração.
Eu mentia descaradamente,
destacava seus defeitos – como as orelhas ligeiramente abertas e as olheiras
constantes –, ria de alguns de seus trejeitos e minimizava seu talento. Seria
demasiadamente troçado caso comprovassem meu desejo por aquela impopular
mulher.
Numa manhã chuvosa de janeiro ela
faltou ao trabalho sem aviso-prévio (a mim, pelo menos). Isso nunca ocorrera
durante o pouco mais de um ano em que trabalhávamos na mesma empresa e foi o
que eu precisava para notar o tamanho de sua importância.
Senti-me nu com a sua ausência,
sobre a qual não perguntei a ninguém. No entanto, constatei que necessitava
daquele perfume de amêndoas que impregnava em minha camisa pelo simples roçar
eventual de sua pele em meu braço, dentro do ônibus. Sentia-o pelo resto do
dia, fazia parte de meu cotidiano. Mas, naquela hora, minha camisa exalava puro
amaciante e não me agradava nem um pouco. De repente, não havia mais motivo
para olhar para o lado oposto do escritório, que estava escuro, vazio.
Trabalhei cabisbaixo durante o
período da manhã enquanto ninguém parecia se alarmar com a falta dela. Por
volta das treze horas, um turbilhão rodopiou dentro de mim na sensação mais
forte que jamais sentira. Nos primeiros segundos, nem ao menos sabia com
certeza se era ela, tamanho o fascínio generalizado que provocara com sua
entrada. O cabelo vermelho ganhara um brilho ofuscante, as roupas pareciam
vindas de um guarda-roupa de socialite. Nunca a vira de salto alto e adorei
perceber que realçavam a beleza de suas curvas. Senti um misto de desejo e
alívio, pois, enfim, poderia chamá-la para sair sem que fosse motivo de
chacota. E faria isso no final daquela tarde.
Quinze minutos haviam se passado
das seis quando consegui concluir meus relatórios. Arrumei a papelada na pasta
numa correria sem igual para tentar alcançá-la, pois sabia que ela não
costumava trabalhar um só minuto após o horário. Olhei à frente sua mesa vazia
e concluí que ela já esperava o ônibus. Despedi com pressa de meus colegas,
mas, estanquei diante da sala da chefia.
Na cadeira em que habitualmente
sentavam aqueles que receberiam uma carga violenta de insultos, estava ela. As
pernas cruzadas, o sorriso inabalável, as mãos percorrendo o cabelo sedoso.
Notei então que aquele homem que eu menosprezava houvera despertado há tempos
para aquilo que eu era cego e – pior – ganhara o que, erroneamente, eu julgara
estar reservado para mim.
*Jornalista
Nenhum comentário:
Postar um comentário