Última vontade
* Por
Marcelo Sguassábia
- Como era da vontade do senhor Arquibaldo Calixto, e passados 30 dias
do seu sepultamento, cabe-me agora abrir este envelope, à frente de todos da
família, para conhecermos o destino que se dará ao seu espólio. Posso começar?
- Corre logo com isso, doutor, que eu já estou gastando por conta o que
me é de direito.
- Aos dezoito dias do ano da graça de dois mil e ... bla, bla, bla, bla,
bla, bla. Ei, espera aí...
- O doutor tá ficando verde, a mão tremendo... o que está escrito nesse
negócio?
- Ele... ele está dizendo aqui que deixou tudo... não é possível...
deixou tudo para mim! Lendo para vocês, textualmente: "Meus filhos e minha
mulher não são merecedores de consideração nem de coisa nenhuma, muito menos de
herança". Desculpem, não sou eu que estou dizendo, é o que está escrito
aqui, o desejo do falecido. Que situação, a minha. O envelope estava lacrado,
vocês testemunharam a abertura. Continuando: "O senhor Salustino, na
qualidade de titular do cartório da cidade, vem demonstrando, perante a lei de
Deus e a dos homens, que é um sujeito digno e de caráter incorruptível,
qualidades que nenhum membro da minha família possui". É constrangedor
isso tudo, eu fico embaraçado...
- Continua, doutor.
- Bom, o texto avança e entra em pormenores que denigrem muito cada um
de vocês. Acho que não é o caso de prosseguir...
- Começou, agora vai até o fim. Vamos ver até onde chegou aquele velhote
filho de uma...
- Como vocês sabem, pela lei, eu sou apenas um executor testamentário,
legalmente incumbido de fazer valer a vontade dos falecidos... Olha, eu posso
ter recebido, por este testamento, a herança. Mas também posso abrir mão dela
em favor de quem eu desejar. Menos da família Calixto, é claro, pois esta não
foi a designação do morto. Ai, que situação!
- Então, o que o senhor pretende fazer?
- O que me parece correto, num caso desses. Penso em transferir o que me
cabe em favor da Igreja, ou dos mais necessitados, alguma instituição de
caridade. Não ficaria bem eu aceitar toda essa fortuna, ainda que esteja no meu
direito. Só fazendas, são 16. Bom, vocês sabem tanto quanto eu o tamanho do
legado.
- O senhor doutor está é se fazendo de santinho. Decerto vai
providenciar uma triangulação, passando os bens para um orfanato, por exemplo.
De comum acordo com o mentor da entidade, depois de um tempo faz ele doar tudo
para a amante que certamente o velho tinha e não queria deixar no desamparo.
Essa sacanagem deve ter sido combinada "de boca" com o velho, antes
dele bater as botas. Essa é que é a verdade, não é? E o senhor doutor há de
ficar com uma parte boa da dinheirama, em troca do servicinho prestado...
- Não fosse eu um homem justo e ponderado, já lhe teria arrebentado
todos os dentes com essa insinuação difamante.
- O senhor não seria tão perverso. Além de me deixar sem um tostão, eu
ainda ficaria banguela. É ruim, heim.
- Em respeito ao saudoso Arquibaldo, vou prosseguir a leitura. Bla, bla,
bla... Ai, meu Deus do céu, essa não!
- Fala, desgraçado, que foi agora?
- Continuando o que o finado determinou: "Isso tudo o que eu
escrevi até agora não vale nada. Sei que a leitura do testamento é presencial e
em voz alta. Se até este momento da leitura ninguém da minha maldita família
interromper para falar alguma coisa, minha herança será repartida, na forma da
lei, entre os herdeiros legítimos. Mas, se alguém questionou alguma coisa,
então o dono do cartório pode, de fato, ficar com tudo. E se assim for, que
faça bom proveito.
*
Marcelo Sguassábia é redator publicitário. Blogs: WWW.consoantesreticentes.blogspot.com (Crônicas e Contos) e WWW.letraeme.blogspot.com (portfólio).
Só aplausos, e muitos mais.
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