Augusto dos Anjos
*Por Pedro J. Bondaczuk
O poeta Augusto dos Anjos é um dos mais fascinantes
personagens da nossa literatura, mas anda um tanto esquecido, até mesmo nos
cursinhos preparatórios para o vestibular. Mas nos chamados "anos
dourados", da década de 60, era bastante popular entre a juventude, embora
não chegasse a ser o autor da moda. Sua temática aproxima-se da do francês
Charles Baudelaire. Acho-a mais sutil, mais densa e muito mais inteligente.
Paraibano de nascimento, tornou-se conhecido quando se mudou para o Rio de
Janeiro, a então capital do País, onde lecionou no Colégio Dom Pedro II.
Augusto dos Anjos incorporou-se para sempre à minha
vida. Tomei contato com a sua poesia mórbida (mas de técnica refinadíssima no
que diz respeito à rima, métrica e principalmente ritmo) através de um colega
de colégio, Antônio Teixeira – filho de
uma família tradicional de políticos de Rondônia, que deve ter feito carreira
em seu Estado, pois se tratava de um estudante brilhante –, que me deu de
presente o livro "Eu e outras poesias", o único que esse escritor do
fim do século XIX publicou.
Cursávamos, na oportunidade, o chamado
"científico" e ambos tínhamos aspiração de estudar medicina. Eu não
consegui ser médico (embora tivesse cursado o primeiro ano), rigorosamente por
falta de recursos financeiros. Acabei indo parar no jornalismo. Ele? Não sei!
Perdemos contato por completo. Mas foi um impacto essa descoberta do poeta
paraibano. Na ocasião, eu atravessava um momento delicado da adolescência.
Havia rompido com a minha primeira namorada e achava que o mundo estava
desabando e que iria morrer, tamanha era minha tristeza. Evitava o máximo que
podia os amigos e passava horas e horas ouvindo as canções conhecidas como de
"dor-de-cotovelo", de Maysa Matarazzo, de Tito Madi e de tantos
outros cantores do gênero, entre um trago e outro de uísque.
Minha leitura era de livros de autores que
extravasavam pessimismo e amargura por todos os poros, tipo "Palavras
Cínicas", de Albino Forjaz Sampaio, "Flores do Mal", de Charles
Baudelaire e os poemas de Guerra Junqueiro, entre outros. Isto dava status na
ocasião. Era uma forma de fazer o gênero de "intelectual", que
impressionava as garotas. Esta era a verdadeira intenção, embora se alguém me
dissesse, certamente negaria com a maior das veemências e brindaria quem se
atrevesse com uma enxurrada de palavrões.
A impressão que Augusto dos Anjos me causou foi
tamanha, que passados 53 anos, me lembro, palavra por palavra, sílaba por
sílaba, verso por verso, o primeiro soneto dele que li. Diz:
"Vês, amigo, ninguém assistiu ao formidável
enterro da tua última quimera.
Só a ingratidão, esta pantera,
foi tua companheira inseparável.
Acostuma-te à lama que te espera.
O homem, que nesta terra miserável
vive entre feras, sente inevitável
necessidade de também ser fera.
Tome de um fósforo. Acenda o teu cigarro.
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
a mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa ainda pena a tua chaga,
apedreja esta mão vil que te afaga,
escarra nesta boca que te beija".
"Vês, amigo, ninguém assistiu ao formidável
enterro da tua última quimera.
Só a ingratidão, esta pantera,
foi tua companheira inseparável.
Acostuma-te à lama que te espera.
O homem, que nesta terra miserável
vive entre feras, sente inevitável
necessidade de também ser fera.
Tome de um fósforo. Acenda o teu cigarro.
O beijo, amigo, é a véspera do escarro,
a mão que afaga é a mesma que apedreja.
Se a alguém causa ainda pena a tua chaga,
apedreja esta mão vil que te afaga,
escarra nesta boca que te beija".
Quando rompi meu isolamento inicial, passei dias
recitando estes versos amargos nas rodas de amigos, escandalizando as garotas,
no afã de mostrar o quanto eu era "maduro" e estava desencantado com
a vida. Com apenas 18 anos! Passei a compor nesse mesmo estilo. Um horror! E
lia, inflamado, tais versos caricatos, como se fossem do mais refinado dos
poetas, candidato ao Prêmio Nobel de Literatura, entre tapinhas nas costas de
aprovação e pedidos de cópia das meninas. Um deles chegou a ser publicado no
jornalzinho do grêmio da escola. Recebeu fartos elogios dos colegas (nunca vou
saber se sinceros) e reparos do professor de português (que na ocasião atribuí
à "inveja" e que hoje percebo que foram muito condescendentes).
Felizmente, os cadernos onde estavam registrados estes
arroubos juvenis, que me envergonhariam agora que sou maduro, ficaram perdidos
no tempo e no espaço. Desapareceram, para meu alívio, em alguma das inúmeras
mudanças de casa que fiz desde então. Só temo que reapareçam, como cadáveres
emergidos da tumba, (igual ao que acontece nos filmes de terror), depois da
minha morte, para depor publicamente contra o meu bom gosto. O amor à vida
acabou prevalecendo sobre a morbidez. Tive, desde então, desencantos e
decepções muito maiores do que a perda da doce e ingênua namoradinha da
adolescência e sem recorrer a gestos tão melodramáticos. Mas vivi momentos de
alegria tão grandes ou até mais grandiosos, que equilibraram essa balança.
Como, aliás, ocorre com as pessoas comuns, normais, que se situam na média dos
mortais, como sou. Isto não tira, contudo, os méritos de Augusto dos Anjos e
nem faz com que o aprecie menos hoje em dia. Pelo contrário. O poeta tornou-se
"cúmplice", por sua obra, da fase mais ingênua e bela da minha vida,
embora na época não me desse conta disso. É como diz a estrofe da famosa canção
de Ataúlfo Alves: "Eu era feliz e não sabia..."
* Jornalista, radialista e escritor. Trabalhou na Rádio
Educadora de Campinas (atual Bandeirantes Campinas), em 1981 e 1982. Foi editor
do Diário do Povo e do Correio Popular onde, entre outras funções, foi crítico
de arte. Em equipe, ganhou o Prêmio Esso de 1997, no Correio Popular. Autor dos
livros “Por uma nova utopia” (ensaios políticos) e “Quadros de Natal” (contos),
além de “Lance Fatal” (contos) e “Cronos & Narciso” (crônicas). Blog “O
Escrevinhador” – http://pedrobondaczuk.blogspot.com.
Twitter:@bondaczuk
Beleza técnica assustadora. Desistiria de lê-lo.
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