Árvore?
* Por
Urda Alice Klueger
(Para meu primo biólogo, Elias Melo)
O novo prefeito resolveu seguir a lei e transformar em bosque o capinzal
na beira do ribeirão. Mata ciliar, coisa prevista, mas que entrava prefeito e
saía prefeito e a mata ciliar nunca saía do papel. Saíam das casas e
prediozinhos próximos era gente braba, indignada com o capinzal que não pedia
licença para crescer, capim branco misturado com capim elefante, uma fartura de
erva que daria para alimentar um pequeno rebanho, embora mal e mal parasse ali,
vez ou outra, um único homem que cortava braçadas de capim até encher seu
carro, e o levava para alimentar um cavalo que tinha em algum lugar, alhures.
Aquela colheita de capim, no entanto, passava despercebida, tamanho o vigor
vegetal daquela beirada de ribeirão – era como tirar um grão de areia de uma
praia.
E a burguesia que morava por ali, incapaz de ver naquele capinzal o
lugar dos sonhos para as brincadeiras de qualquer criança, estava sempre a
telefonar para a prefeitura com toda a sua empáfia burguesa, falando nos
possíveis futuros delinquentes que viriam se esconder ali no capim e botar em
risco suas vidinhas de pouco valor, vidinhas atreladas a coisas como o carro do
ano ou o tamanho da piscina, quiçá aos tablets dos filhos – havia que cortar,
havia que cortar, e por pior que fosse o prefeito, sempre arranjava um jeito de
mandar guilhotinar aquele capim todo, premido que era pelas forças da maçonaria
que tinha em comum com aquela gente. Vivesse eu ali na beira daquela fartura de
capim, e colocaria ali duas boas vacas holandesas, que dariam conta do recado e
produziriam leite, manteiga e queijo, quem sabe até para a escolinha da favela
próxima – se não conseguisse vacas, algumas cabras fariam o mesmo serviço e
supririam a escolinha (e, quem sabe, até a própria burguesia) – mas burguês é
gente que sujaria a mão para cuidar de vacas e cabras, ainda mais em tempos de
supermercado, quando as pessoas já tinham desaprendido essas coisas de tirar
leite e bater manteiga?
Só que o novo prefeito resolveu seguir a lei e plantar a mata ciliar, e
o bosque foi projetado e criado. Sisudos engenheiros andaram por ali e mediram
e fizeram contas, e numa manhã as mudinhas chegaram, fiapinhos de nada
plantados dentro de tubos com um pouquinho de terra dentro de saquinhos de
plástico preto, e vieram os operários, decerto especializados naquilo, pois em
poucas horas o bosque estava plantado dentro do capinzal tosado, coisa
invisível assim a olho nu, mas que eu acreditava que existia porque vira
acontecer.
Era janeiro ou fevereiro, faz um ano, tempo quente – será que aquelas
mudinhas vingariam? Eu andava por lá na maior torcida, o capim crescendo
depressa, escondendo aqueles projetinhos de alguma coisa – será que aquilo
daria certo, produziria mesmo um bosque de sombras e raízes profundas, como era
a idéia? Ali, trêmulos e parecendo infelizes, os fiapinhos começaram a botar um
arremedo de folhinha para fora; depois, fizeram uma folhinha inteira, faziam o
que podiam para ter pulmõezinhos que lhes permitisse respirar. Eu espiava cada
mudinha daquela a cada dia, até que, numa manhã, aconteceu o mais inesperado de
tudo: meu cachorro foi lá, primeiro xeretou, depois cheirou um daqueles fiapos,
e dentro dele aconteceu algo de reconhecimento que só cachorros sabem explicar.
E então ele levantou a perna e fez xixi no fiapinho. Estava dado o certificado
para aquela mudinha: ela era uma árvore!
Faz um ano. Qualquer cachorro pode ir lá, hoje, e fazer xixi em cada uma
daquelas que serão, sem dúvida, árvores frondosas daqui a pouco. Vai haver um
bosque lindo!
Blumenau, 27 de fevereiro de 2014
*
Escritora de Blumenau/SC, historiadora e doutoranda em Geografia pela UFPR
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Depois do aval de Atahualpa, tudo pode acontecer, inclusive um bosque. Cachorros sabem das coisas.
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