Uma crônica de Natal
* Por
Raymundo Netto
Não sei vocês, mas eu nunca gostei do Natal. Acho uma data muito triste,
deprimente, talvez por isso, um dia, decidi que só me casaria se fosse num
Natal. Assim o fiz!
Nunca escondi de ninguém esse meu desânimo natalino, a vontade de fugir de festinhas de confraternização, amigos secretos, jingle bells e coisas assim. Penso que, justamente por isso, é que me acontecem coisas como a que revelarei agora para vocês.
Uma tia, semana passada, trouxe a minha casa, emprestado, um relógio de parede — com gabinete de carvalho escurecido, pêndulo dourado e umas raladurazinhas no mostrador de algarismos romanos — que pertenceu a meus avós. Desde menino era louco por aquele relógio... Pois bem, na madrugadinha, acordei com o seu sonoro gemer de horas. Na casa pequena o som reverberava. Como parecesse não parar nunca, pensei: “Será que travou?”
Ao chegar ao corredor, o susto: uma figura esfumaçada, de olheiras
sulcadas e cavanhaque revoltoso, saía da portinhola de vidro do relógio e
argentava, num clarão, a sala:
— Ebenezer! Ebenezer! — berrava em tom gutural.
— Ebenezer? Está falando comigo?
— Sim, seu tolo insensível! Não lembra mais de mim? Marley, Boz Marley!
— Não, seo Boz, pode voltar para o seu relógio... Ligação errada!
Ele não me dava ouvidos, ou não os tinha, e continuava como numa cantiga
de grilo:
— Ebenezer, eu sou o espírito do Natal e o levarei para conhecer o Natal
do passado, do presente e do futuro. Você precisa se arrepender já, enquanto
ainda há tempo, senão...
Arrependimento? Nem precisava, coleciono tantos, tantos... Mas ele não
me ouvia. Enlaçou meu pescoço com as pesadas correntes que arrastava e, como
por encanto, tudo em minha sala pôs-se a desaparecer: o sofá velho (este, eu
nem liguei), a tevê, a cadeira de balanço e até a empoeirada árvore de natal
onde, desde o ano passado, o pisca-pisca deixara de funcionar. Tudo desapareceu
dando lugar a calçadas, prédios e um renque de postes: estávamos na rua!
O Natal do passado
Reconheci o Palacete de Carvalho Mota, antigo prédio da Inspetoria das
Secas: era a rua General Sampaio, centro da cidade.
Percebi que, na esquina, um pequeno terreno amurado atraía várias
crianças. “O que está acontecendo ali?”, perguntei ao Boz. “Você quer saber?
Vamos lá, então.” —, arrastou-me.
Dali de cima, podíamos ver um senhor moreno — Antônio de Paula Barros,
disse-me o Boz — suando às bicas por detrás de uma lapinha. Na verdade, era uma
espécie de cidade em miniatura, toda mecanizada, onde se via um trem com
rostinhos de passageiros que saiam e se escondiam rapidamente, automóveis,
lavadeiras, soldados marchando, a procissão, operários numa fábrica,
serenatistas ao pé de um sobrado, um cata-vento rangedor, o engenho, o
carrossel e sinos de igreja a badalar numa ilusão diorâmica sustentada a fios
movidos por um velho motor, enquanto um gramofone, roucamente, tocava uma
antiga melodia natalina.
Dois cisnes cruzavam o espelho margeado pela areia dando a impressão de
uma lagoa. Próxima, e no centro da pequena cidade feita de papelão e latas
amassadas, a manjedoura do menino Jesus era alteada por uma estrela de papel.
As crianças, e mesmo os curiosos pais, riam admirados até quando acontecia
algum “acidente” e o pobre Barros tinha que desmanchar aquilo tudo, puxando
fios, ajeitando os bonequinhos, desentalando o trem descarrilado. “Que coisa
linda”..., pensava, quando senti puxar-me o pescoço: “É hora de irmos adiante,
Ebenezer!”
O Natal no presente
Num piscar de olhos, saímos do centro e fomos parar num Shopping Center,
o “não-lugar” de todas as cidades do mundo. O espírito não parecia tão severo
quanto antes. Sentou-se embaixo de uma fonte e observava as pessoas comprando,
comprando, comprando. Num canto, o trono de um Papai Noel triste — “não estaria
ganhando pouco demais?” — a bater no piso com o coturno cadencioso. As pessoas
entravam e saiam das lojas num corre-corre danado, indiferentes à torre de
concreto que crescia, ali ao lado, por sobre um tapete de mangue. Elas
conferiam listas, endividavam-se, discutiam, falavam que tinham de ir para a
festa de Fulano, tinham que comprar o presente para Ciclano e tinham mais
outras tantas coisas para fazer, mas, o que queriam mesmo, era largar tudo isso
e assistir ao show da dupla chorosa que iria tocar no reveillon naquele hotel
de luxo... “Mas com quem iriam deixar as crianças? Ah, elas atrapalhavam!”
— Já vi o bastante, e você? — sentenciava o espírito.
— Eu não sei, para mim parece tudo tão normal. Quer dar uma passadinha
na praça da alimentação, não, espírito? — nem me respondeu!
O Natal no Futuro
Estávamos na praça do Ferreira, foi o que o Boz me disse, eu não a
reconheci. Aliás, nem tinha mais esse nome. No meio dela, ao invés da Coluna da
Hora, um imenso Jesus de fibra todo iluminado, braços abertos e olhos de
martírio, girava enquanto abria a bocarra para receber as moedas que as pessoas
lhe lançavam. O mais impressionante era que aquelas pessoas não tinham face,
acredita? Verdade... Não tinham olhos, narizes ou bocas, e, às costas, via-se
uma pronunciada chave de corda que as impulsionava, maquinalmente, a seguir em
frente com suas roupas, sapatos, bolsas e cabelos iguais. A diversidade tinha
ido para o espaço, assim como as árvores, os rios, lagoas, pássaros e os
animais. O céu embaçava visto através de uma redoma de vidro; o piso e grama
emborrachados, os jardins de plástico e alumínio. Família? Ninguém sabia o que
era isso. Filhos, só de incubadeiras! Não sabiam pensar, repetiam apenas.
Moravam sozinhos em lofts. Nem sei se esse povo todo estava ali ou eram apenas
imagens holográficas:
— Consumismo demais, desperdício demais! Só ganância, egoísmo, vaidade,
violência, exploração e muita mentira! Então, Ebenezer, você está convencido de
que precisa mudar?
— Sim, espírito... Tenho que mudar e voltar a ser o Raymundo Netto
novamente. Eu não sou esse tal Ebenezer, criatura! Vossa fantasmagoria se
enganou feio. Quero mais ver nada, não!
— Sério? Não é o Ebenezer Scrooge? — olhou para um pedaço de papel —
Homessa, não é a primeira vez, em minha divisão, que digitam o CEP errado.
Secretárias! Mil perdões, foi mal!
Dizendo isso agitou os braços e, de repente, eu estava novamente em
minha casa.
De volta...
No silêncio da sala, o sol já despontava. Iria deitar-me, quando olhei
para a árvore de natal apagada. Lembrei: basta apenas uma das lâmpadas do
pisca-pisca queimar para que todas as outras percam a sua função. Assim como as
pessoas... Devagar, troquei a pequena lâmpada, e, toda ela voltou a brilhar!
Sentei para admirar a dança das coloridas piscantes que tocavam uma musiquinha
parecida com a da lapinha do velho Paula Barros. Pareciam me dizer: nós não
estamos sozinhos e temos que comemorar todos os nossos dias. Feliz Natal,
amigos e ledores!
Texto baseado em Um Conto de Natal de Charles “Boz” Dickens (1812-1870)
* Raymundo Netto é
escritor, autor do romance Um Conto no Passado: cadeiras na calçada, e um
sonhador declarado que ainda se encanta com as pessoas.
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