Galeria Metrópole
* Por Laís de Castro
A cerveja
trincava de gelada e nós sentadas
naquele bar da Galeria
Metrópole , lá
embaixo , como
se o prédio todo
em cima
pudesse esconder as idéias
contra a ditadura
militar ou ,
no mínimo , proteger
nossas cabeças contra
as balas perdidas do regime
naquele ano sem
graça de 1967. Nem
vale a pena desfiar os crimes
cometidos por aquele
desgoverno como
um rosário
doloroso , mas
é preciso que
todos saibam que
éramos uma geração cabisbaixa
e enxertada de medos .
Nessa noite ,
porém , tinha
apenas acabado
mais uma gravação
do programa O Fino
da Bossa e vínhamos de aplaudir
a magnitude de Elis Regina, a inspiração de Chico Buarque e o vigor
da voz de Milton Nascimento e muita gente boa
mais , que
não quero ficar
repetindo que eu
não sou relógio
de repetição . Por
enquanto nos
(des)contentávamos em aplaudi-los e chorar os amigos mortos . Conseguíamos separar
as coisas e continuar
desfrutando de alguma alegria , porque quando a
gente é jovem
a vida exorbita, o sangue
se encaichoeira nas veias , somos imortais seres
do amor o corpo
e o coração abertos
como as portas
dos nossos olhos
e ouvidos que
tudo vêem, ouvem e saboreiam.
Pois ali mesmo, apesar de tudo,
parecia que aquele gênio da música estava me olhando há horas, um jeito fixo,
carinhoso, quase trêmulo. No começo nem pensei que fosse comigo, tenho essa
mania besta até hoje, de achar que sou baixinha, feia e sem atração nenhuma,
mas era comigo, alguém me proteja, socorro, aquela cara está me olhando. Meio
sem jeito eu cruzava as pernas de um lado, elas ficavam mais à mostra por causa
da saia curta (lembram da minissaia, vocês aí?), cruzava do outro, micava mais,
acho que dava bandeira da minha falta de graça, ela quase sorria com o olhar
que continuava parado em
mim. Perguntei pro pessoal da mesa se aquilo estava
acontecendo mesmo e eles disseram que sim. Tímida, tomei uns mil copos da
cerveja trincando.
Para encurtar essa história
maluca, depois de umas quatro horas foi que eu imaginei estar comendo aquela
travessa de alcachofras de que falei lá em cima. No dia seguinte, ela se levantou, vou para
o Rio de Janeiro, moro lá, mas na semana que vem tenho que fazer O Fino de novo
(fazer era cantar lá e O Fino da Bossa, para os mais jovens, era o
programa de MPB comandado por Elis Regina na TV Record de então, de saudosa
memória) eu te vejo no Barbudinho e eu lá quieta, sentada na mesa, tomando o
café mais preto do mundo, não precisa me dizer nada, pensava, eu sou jornalista
e sei que você é casada e tem um filho pequeno, porra. Em casa, aquela noite
não me saía da cabeça, nem do estômago que doeu o dia inteiro e nem dos
pulmões, eu fumava tanto que tossi o dia todo. Sou burra, besta, porque fui
fazer isto, uma alteração mental, um frenesi, imprudência, insensatez, sei lá o
que mais, isso pode dar uma merda só, naquele tempo, todos hão de convir que
não era como é hoje. Aconteceu de novo na semana seguinte e na outra e na
outra. Meu coração estava encharcado daquela paixão e eu me entreguei mais
cegamente do que morcego de dia, tinha a impressão de que aquela mulher tinha
nascido para ser minha, todo mundo odiava a segunda-feira, eu esperava como uma
criança espera o seio materno que vai lhe alimentar.
Na minha
aparência , contudo ,
não deixei que
a mutação sequer
tangenciasse. Eu era
a mesma . Se me
arrancassem a pele , sim ,
surgiria uma ferida profunda ,
onde a tristeza
e a felicidade se misturavam como café e leite .
Era exatamente
uma xícara de café
com leite
que eu
sorvia, com a paz
possível , antes
de sair para o trabalho , quando o telefone tocou eu te amo , eu te amo , eu te amo , falava devagar e pausadamente a voz
que o país
inteiro conhecia, como
se quisesse que a mensagem
fosse melhor entendida .
Tola , perplexa
e muda , do lado
de cá , esqueci de perguntar
como ela sabia meu
telefone , que ,
vocês hão de lembrar ,
em 1967, celulares
eram objetos de filme
de ficção , os números
de São Paulo só
tinham cinco algarismos
e DDD, nem pensar .
As ligações eram feitas
por telefonistas
que avisavam, solenes ,
demora de duas horas ,
chamarei depois . A cabeça
zumbindo, eu também
te amo ,
eu também
te amo ,
escandi cada sílaba
e ela avisou vou fazer a bosta
da Jovem Guarda
domingo , por
um lado
odeio tudo isto ,
por outro
venero porque me
leva até
você , espero lá
e aí a gente
foge daquele monte de chatos logo que eu acabar , que merda, ter que cantar lá , tudo culpa do festival .
Depois daquele telefonema , quando
pisei na redação perguntaram se eu tinha
chorado, tinha , meu
cachorro morreu, nunca
tive um cachorro
na vida , mentia para
os amigos , para
a família , andava na transversal , o que
tinha , na verdade ,
era um
medo desgraçado
que me
zumbia na cabeça como
motor de carro
velho , aos trancos
e barrancos . Depois
de três meses eram três
vezes por
semana , não
sei como ela se virava, mas estava sempre
ao meu lado ,
o telefone tocava toda
hora , eu
te amo ,
não me
deixa , eu
só repetindo que
também , que
não deixava, travada total , entregue
ao destino , tinha
um colega
de redação a quem
eu contava tudo
– afinal , sucumbi, ninguém
é de aço – ela era
árabe , maktub, me
dizia e me abraçava e conversava comigo quando eu descia os degraus
da perdição até
um buraco
mais fundo
do que aquele
subsolo onde
tudo começara.
Eu era
a mais feliz
de todas as mulheres que já haviam
pisado na face da terra .
E a mais infeliz .
Eufórica . Depressiva. Naquela redundante montanha
russa mental , sorvia em
goles a doce
paixão ancestral
e vomitava em amargas e caudalosas golfadas o pavor
do fim vaticinado.
Reunião de pauta, o poderoso
chefão despachando as duplas, você e o Ferreira vão ver porque O Fino da Bossa
acabou, não vai mais pro ar. Vê se tira uma entrevista bomba... eu não ouvi nem
mais uma palavra do que ele dizia e minha roupa ficou inteira molhada de um
suor súbito, todo mundo querendo saber o que era aquela palidez total, pressão alta, pressão baixa, água com açúcar,
sal embaixo da língua, senta aqui, deita, vai pro ambulatório, não vou, já
melhorei vambora Ferreira, toca pro trabalho. No carro, sentada atrás,
ruminei meu susto com farinha, engoli seco meu pavor. Com o que pude reunir de
coragem, fiz a reportagem, cumpri a tarefa, a cabeça viajando ao Rio e
voltando, as lágrimas galopando no meu sonho, querendo inundar o mundo e presas
à minha responsabilidade. Resiliente, diriam os físicos, resiliente.
Vesti luto
íntimo e corroí meu
cérebro de dor
e desolação nos
dois meses seguintes ,
como se baratas
o roessem e também roessem minha travessa
de alcachofras. Nunca mais pisei no Barbudinho.
Antes e além
disso, na noite daquele dia fatídico , não atendi o telefone que tocou madrugada
adentro, sem trégua .
* Jornalista, atuou no grupo Abril (3 prêmios Abril). Trabalhou,
ainda, 8 anos na Editora Três (sob Luís
Carta), 11 na Editora Símbolo onde foi diretora da Corpo a Corpo, da Vida
Executiva e na Dieta Já. É autora do livro “Um velho almirante e outros
contos”, pela Editora Siciliano.
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