Sanidade total à brasileira
* Por
Urariano Mota
Há duas semanas, precisei de um
atestado de sanidade física e mental. Quem me conhece sabe que esse atestado,
aplicado ao indivíduo que sou, ou é desonesto ou é impossível. Mas que fazer, a
gente precisa, e necessidade não tem lógica, tem é carência enorme à procura de
satisfação. Eu buscava, portanto, um Atestado de Sanidade Física e Mental.
Assim em maiúsculas fica até mais digno, e mais crível. Por isso abro o
catálogo telefônico e destaco os números de telefone dos centros médicos,
Centro Médico, devo dizer, para maior idoneidade dos Centros. Ligo, e começa o nonsense.
– Roseli…
– É do Centro Médico Ulisses
Eulâmpio?
– Sim, Roseli, às suas ordens.
– É do Centro Médico?
– Sim… um momento.
E depois de 3 minutos de
intervalo, por vingança, suponho, porque eu não soube logo que o Centro Médico
Ulisses Eulâmpio e Roseli eram uma só e só uma pessoa:
– Sim… fale.
– Vocês fornecem atestado de
sanidade física e mental?
– Atestado de…
– Sanidade Física e Mental.
– Só o Físico.
– E o Mental?
– O senhor tem que ir a um
médico de doença mental.
Antes que eu agradeça, a
recepcionista que é uma instituição desliga. Ligo para outros, outros Centros
Médicos, outras Centrais de Atendimento de Saúde, até para Hospitais. Sempre a
mesma conversa. “Só o físico atestamos, o senhor, se quiser, que vá a um
psiquiatra pegar o outro”. E o outro, bem sei, por mais características certas
e inabaláveis de esquizofrenia, o outro deve ser eu. Que não vai correr esse risco.
Por isso este, aqui, volta a um décimo Centro Médico de Saúde.
– Escute, vocês não têm médico
clínico geral?
– Só temos especialistas.
– E não têm dois especialistas,
um físico e um mental, no Centro?
– O senhor deveria ir a um
Hospital Psiquiátrico.
Desligam. Mas o louco, que bem
sabe estar no Brasil, terra de todas as possibilidades possíveis e imagináveis,
não desiste. E lhe dizem, na vigésima primeira tentativa.
– Centro de Medicina do
Trabalhador.
– Vocês fornecem atestado de
sanidade física e mental?
– Sim, fornecemos.
– Atestado de Sanidade Física…
e Mental?!
– Sim, fornecemos.
– Certo… (E repito, para maior
certeza)… Atestado-de- sanidade- física- e- mental.
– Um momento…
E por vingança, suponho,
deixa-me a esperar uns bons 5 minutos, porque não ouvi bem, e se ouvi deveria
ter acreditado que ali se fornecia Atestado de Sanidade Física e Mental, sem
dúvida, idiota.
– Centro de Medicina do
Trabalhador…
Imagino, porque estou em casa
ainda, imagino que o Centro de Medicina do Trabalhador é um complexo
industrial-médico cheio de canos, retortas e de portas, e laboratórios, e
corredores compridíssimos, cheios de especialistas de todas as especialidades,
se assim podemos dizer. Um lugar onde entramos em uma porta e saímos em outra,
de exames de raios X a laboratórios de análises, de laboratórios a máquinas de
eletrochoques, até atingir as perguntas cruciais dos psiquiatras, que nos
estudam e olham como se fossem a Miss Marple de Agatha Christie. Imaginação
vulgar, estúpida e insípida, já veem.
– Me diga uma coisa: demora
muito pra pegar esse atestado?
– Não, é ordem de chegada.
– Tem muita gente aí?
– Centro de Saúde do
Trabalhador… um momento. Agora, só uns quinze.
– Vocês atendem por algum plano
de saúde?
– Centro de Saúde do
Trabalhador… O pagamento é na hora.
– E quanto é?
– Trinta reais.
Desta vez sou eu que desligo.
Trinta reais! Isso ou é uma absoluta anarquia, uma grande zona, ou deve ter
algum subsídio para, depois do check-up,
diagnósticos, especialistas e consultas, atingir um preço tão barato. E me
mando, necessitado e incrédulo que sou, para o centro do Recife.
Ó homem de pouca fé, ainda que
vivas em um país cafeeiro, acredites, o Centro de Medicina do Trabalhador
existe, e não é uma absoluta zona. É um lugar com aparência decente (“como deve
ter todo prostíbulo que funcione”, um diabo me diz). Mas não. Ali entro em uma
sala, com duas atendentes, que me parecem moças da maior seriedade. E por isso
pergunto, com um pé atrás, em um intervalo de suas respostas “Centro de
Medicina do Trabalhador” no telefone:
– Atestado de Sanidade Física e
Mental, é aqui?
– Aguarde a sua vez – ela me
responde, enquanto me entrega um papelzinho numerado, onde leio, “ficha 27”.
Olho ao redor. À minha frente,
jovens recém-saídos da adolescência, e um deles sem dúvida é um rapaz típico de
Pernambuco. Veste uma camisa negra, com as palavras, digo, com o anúncio “Quick
Silver”. Palavras em inglês, nas camisas, para muitos jovens do Recife têm
um valor estético, porque as veem com o mesmo significado de um ideograma
chinês. Ao lado, um cidadão gordo, um quase velho, diria, se eu não estivesse
em idade próxima à dele. Um inválido, eu acrescentaria, se nos últimos tempos
eu não estivesse bem solidário para com os inválidos. Um homem, enfim,
completo, que não passará com a sua imensa barriga em qualquer check-up. Ele
sequer passa na abertura da cadeira, e por isso se põe um pouco de lado, a
subtrair uma parte do largo traseiro no assento menor. Veste uma camisa bege, e
percebo que outros também se vestem como ele, é uma farda, e todos eles possuem
uma fita azul no pescoço, que desce, a fita, para um crachá, que ocultam no
bolso, onde está escrito “Tribunal de Justiça de Pernambuco”. Ah, bom, então
isto aqui é sério, jamais será um prostíbulo, falo comigo para o meu outro.
Seis funcionários da justiça, chego a contar. Da Justiça, corrijo. Seis
honrados servidores da Justiça de Pernambuco à espera do seu Atestado de
Sanidade Física e Mental. Ó homem de pouca fé, o negócio, digo, o atendimento
médico é garantido pelo órgão máximo das leis do Estado. Por isso, espero em
paz e silêncio, para não descansar em paz. Assim manda o bom senso.
Abre-se uma porta. Sai uma
senhora, jovem, com uma bata branca. É médica, me digo. Porque os médicos usam
bata branca. Mas não só: a jovem moça que sai tem um certo ar de confiança, da
mais certa e certeira impunidade. Esse ar dos maus médicos, devo restringir,
para viver sem a sua ameaça. E me calo, sob a proteção dos funcionários do
estado. A jovem passa, volta e se fecha em uma sala, misteriosa. A senhorita da
recepção me chama. Enquanto preenche uma ficha, que deve ser a minha, pergunta:
– Altura?
– Um metro e setenta. (Quis
dizer um metro e oitenta e cinco, mas por surto de consciência reduzi quinze
centímetros)
– Peso?
– Setenta quilos.
– Aguarde.
Depois que me sento, descubro
que por simetria informei meu peso em concordância emagrecedora com a minha
altura. Um excesso de estética me fez descer o peso em vinte e poucos quilos.
Mas é como se eu os tivesse, me digo. Mentalmente, sou um homem esbelto. No
ideal em que me vejo, tenho um metro e oitenta e cinco de altura e peso setenta
quilos. Belo melhor não há.
Eis então que chega a minha
vez, e uma porta se abre para o meu primeiro exame de Atestado de Sanidade
Física e Mental. O médico que me atende, devo dizer, o médico na frente do qual
eu me assento, tem os olhos fitos na minha ficha estética. Ele não me olha.
Coitado, compreendo. A seu lado possui uma pasta grande, aberta, cheia de
fichas, e um papel com quadrinhos, que imagino ser um mapa estatístico, dos
seus atendimentos na manhã. Quantos? Sessenta, noventa, cento e vinte? Sem me
olhar, sem me ver, pergunta o pobre homem:
– Alguma doença?
– Não.
– Já fez alguma cirurgia?
– Sim…
O seu rosto ganha um ar de
enfado, de aborrecida contrariedade. E sem me perguntar qual cirurgia e a razão
de ter passado por bisturi:
– Mas tudo bem, não é?
– Sim, tudo bem…
– Fuma bebe drogas tóxicos
algum vício, o braço.
Estendo-lhe o direito, a pensar
que ele vai procurar, com percuciência, algum sinal de picada, marca ou
tatuagem. Engano. Ata-me um tecido, ágil, pelo que sinto, na altura do
antebraço, e com dois apertos em uma bola escura olha rápido o ponteiro em um
medidor.
– Pode ir.
Confesso que lhe estendi a mão
para um cumprimento, mas o pobre homem não pôde corresponder, tão pesada era
sua tarefa de formar novos quadrinhos de atendimento.
– O próximo.
Na recepção, a gentil e decente
moça me entrega um papel já assinado por um médico, que deve ser o mesmo na
frente do qual eu transitei. Entre o exame e o atestado há uma velocidade mais
rápida que a da luz. Saio à rua, quase corro, com medo que a recepcionista se
arrependa e me chame de volta. Leio e releio o documento. Parece mentira, mas
os meus olhos não mentem: “Declaro, para os devidos fins, que o portador se encontra
em perfeito gozo de saúde física e mental”. Mas que belo, que bela é a nossa
organização física, mental e declaratória. Jamais poderia imaginar que por
trinta reais eu seria um homem em pleno gozo de saúde. E magro, belo e feliz
para os devidos fins, que espero longínquos.
*
Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da
redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações
Futuristas”, cuja paisagem é a ditadura Médici e “Soledad no Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao
ensino em colégios brasileiros.
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