Mundo sonhado pelo
poeta
O mundo sonhado por
Carlos Drummond de Andrade é fascinante, como soem ser as idealizações dos
poetas. Ele traça um esboço, mesmo que impreciso, desse resgate do Éden
original, na crônica “Organiza o Natal”, publicada na página 52 do seu livro “Cadeira
de balanço” (Livraria José Olympio Editora – Rio de Janeiro – 1972). O mínimo que se pode dizer desse texto é que
ele é arrebatador. O máximo... Bem, nesse caso, teríamos, sem nenhum exagero,
que nos valer de todos os adjetivos positivos que existissem no mais completo
dos dicionários e, ainda assim, faltariam palavras para expressar nossa
admiração.
Frise-se que Drummond,
em toda sua obra – poética ou não – forneceu pistas, em doses homeopáticas, do
mundo em que gostaria (e que todos nós gostaríamos) de viver. Mas foi nessa
crônica específica, salvo engano, que sintetizou as características básicas
desse “Éden” definitivo, do qual quem nele vivesse jamais seria expulso. Não
haveria novo Adão. Não existiria nova Eva. Homem algum jamais cometeria o “pecado
original” da desobediência. Essa possibilidade sequer passaria, mesmo que
remotamente, pela cabeça dos seus venturosos habitantes.
Esse paraíso, supondo
que seja um dia conquistado pela humanidade, será caracterizado pelo amor
universal, imortal, irrestrito e sempre, sempre plenamente correspondido. Não
haverá, portanto, ciúmes, traições, frustrações de quaisquer espécies, mágoas e
muito menos dores de cotovelo. “Então nos amaremos e nos desejaremos
felicidades ininterruptamente, de manhã à noite, de uma rua a outra, de
continente a continente, de cortina de ferro à cortina de nylon — sem cortinas”, como o poeta enfatiza.
A luta pelo poder, que caracteriza isso que aí está e que
eufemisticamente denominamos de “civilização”, será coisa do passado. Será, no
máximo, a lembrança de um pesadelo que passou tão logo tenhamos acordado. Por
que? Simples. Porque “governo e oposição,
neutros, super e subdesenvolvidos, marcianos, bichos, plantas entrarão em
regime de fraternidade”.
Nesse mundo ideal não haverá ricos e nem pobres. A noção de propriedade,
que envenena as relações humanas e arruína vidas, por razões diferentes, tanto
de quem tem quanto de quem não possui bens, será esquecida, em benigna amnésia
seletiva. (...) “Os bens serão repartidos
por si mesmos entre nossos irmãos, isto é, com todos os viventes e elementos da
terra, água, ar e alma. Não haverá mais cartas de cobrança, de descompostura
nem de suicídio. O correio só transportará correspondência gentil, de
preferência postais de Chagall, em que noivos e burrinhos circulam na
atmosfera, pastando flores; toda pintura, inclusive o borrão, estará a serviço
do entendimento afetuoso. A crítica de arte se dissolverá jovialmente, a menos
que prefira tomar a forma de um sininho cristalino, a badalar sem erudição nem
pretensão, celebrando o Advento”.
E como
serão as artes nesse mundo ideal, já que para ter essa característica de
perfeição, elas têm que ser perenes, porquanto não faltará beleza para ser
exaltada por artistas inspirados? “A poesia escrita se identificará com o perfume das
moitas antes do amanhecer, despojando-se do uso do som. Para que livros?
perguntará um anjo e, sorrindo, mostrará a terra impressa com as tintas do sol
e das galáxias, aberta à maneira de um livro. A música permanecerá a mesma, tal
qual Palestrina e Mozart a deixaram; equívocos e divertimentos musicais serão
arquivados, sem humilhação para ninguém”.
E as instituições oficiais, como ficarão? Bancos, repartições, aparatos judiciários, forças armadas etc.etc.etc. que papel terão? Nenhum! Simplesmente não existirão, por absoluta desnecessidade de existência. “Com economia para os povos desaparecerão suavemente classes armadas e semi-armadas, repartições arrecadadoras, polícia e fiscais de toda espécie. Uma palavra será descoberta no dicionário: paz”. Nesse império da solidariedade, não haverá transações comerciais. Todos terão acesso livre a tudo o que desejarem e que precisarem. “Todo mundo se rirá do dinheiro e das arcas que o guardavam, e que passarão a depósito de doces, para visitas. Haverá dois jardins para cada habitante, um exterior, outro interior, comunicando-se por um atalho invisível”.
Não haverá
mais a absurda exploração do homem pelo homem. “O trabalho deixará de ser imposição
para constituir o sentido natural da vida, sob a jurisdição desses incansáveis
trabalhadores, que são os lírios do campo. Salário de cada um: a alegria que
tiver merecido. Nem juntas de conciliação nem tribunais de justiça, pois tudo
estará conciliado na ordem do amor”.
Mas... esse paraíso de delícias não terá fim? Ninguém morrerá? Bem, esta
parte foge da alçada do poeta, mesmo em sonhos. A extinção, todavia, não
causará o terror que hoje causa. E será opcional. “A morte não será procurada nem esquivada, e o homem compreenderá a
existência da noite, como já compreendera a da manhã”. Ou seja, haverá a
compreensão, sem angústias e nem desespero, de que o fim é decorrência natural
do começo, como tudo no universo. Afinal, planetas, estrelas e galáxias também
se extinguem completado seu ciclo.
E a quem caberá a administração do Planeta, que não mais será dividido
por impérios e nações, ou por qualquer ideologia, sentimento nacional, religião
etc. Todos seremos cidadãos de um único e imenso país: a Terra? Serão
sociólogos, ou filósofos, ou renomados políticos? Não, não e não! “O mundo será administrado exclusivamente
pelas crianças, e elas farão o que bem entenderem das restantes instituições
caducas, a Universidade inclusive”.
Pena que nada disso seja, pelo menos na atualidade, viável. Nada indica
que um dia será. Pelo contrário... Mas só não é, porque o dito Homo Sapiens não
“quer” que seja. Porque, dada a estupidez humana, não passa de utopia, de
idealização, de delirante fantasia. Tudo isso me faz desacreditar, cada vez
mais, da inteligência e racionalidade humanas. Por isso, Drummond encerra essa
empolgante crônica com esse desalentado desabafo: “Ah! Seria ótimo se os sonhos do poeta se transformassem em realidade!!!”.
E como seria! Mas... não é e apenas por causa do egoísmo, da maldade e da
estupidez humanas, que transformam coisas tão triviais e potencialmente factíveis
em absurdos, quando não em delirantes fantasias.
Boa leitura.
O Editor.
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