A Festa dos Tolos
* Por
Rubem Alves
Dizem que o que se vai celebrar é o nascimento de um menininho, que veio
ao mundo numa estrebaria, em meio às vacas, cabras e cavalos, nascido de
um casal pobre que deve ter tido como ceia nada mais que uns pedaços de pão
velho, leite e, talvez, um pedaço de queijo. Dizem que a contemplação
desta tranqüila cena bucólica tem o poder de nos salvar da nossa loucura,
devolvendo-nos o sentido das coisas essenciais. Procuro sinais desta criança,
alguma tímida indicação de que ainda nos lembramos dela, porque eu também
estou em busca de tranqüilidade. Mas a única coisa que encontro é a figura
do Papai Noel, que trabalha sem cessar para perturbar o
desejo, espicaçando as pessoas a fazer dívidas, a usar seus cartões de
crédito, a comprar jóias e brinquedos eletrônicos, e a se empanturrarem de
vinhos, perus e outras iguarias caras, dizendo que felicidade é isto. Se eu
fosse um marciano descido à Terra, e nada soubesse dos textos sagrados,
concluiria que o tal de Menino Jesus deve ter sido o inventor da
gastronomia ou o rico proprietário de uma cadeia de shopping centers...
Comecei a pensar que talvez o tal Papai Noel tenha se enganado, e tenha comparecido à festa errada, pois ele se parece mais com Baco que com os personagens do presépio. Desconfiei. Afinal de contas, quem foi que o convidou? Quem lhe deu autoridade para ser o mestre de cerimônias da celebração? Donde surgiu?
Resolvi pesquisar. Fui aos textos sagrados, e nem sombra dele! Nas
obras de arte tradicionais que pintam a bela cena, encontrei
bichos, magos, pastores, estrelas e coros angelicais. Mas o velhinho
bem-nutrido com o seu saco de brinquedos, nenhum artista o pintou. Sabiam
que ele não combinava com o ambiente. Fui às enciclopédias, inclusive a Britânica,
e o seu nome não aparece nem mesmo no índice. Depois de muito trabalho
encontrei uma referência às suas origens apenas na Encyclopaedia of
Religion and Ethics, de James Hastings (editor). E o que li me
fascinou.
Tudo começou com uma festa que os cristãos faziam,por ocasião do Natal.
Parecida com um carnaval, era uma celebração mascarada que, por alguns
dias, punha o mundo de cabeça para baixo. Carnaval, como todo mundo sabe,
é o curto tempo quando os sonhos se transformam em realidade: a cozinheira
vira princesa, o operário vira rei, o marido boi-de-carro se transforma em
pirata, e o professor é jardineiro... Tudo no “faz-de-contas”. O mundo real é
parado para que os desejos se revelem... Pois era isto que se fazia para
celebrar o nascimento do Menino Deus, na clara percepção de que se
as crianças ou Deus (o que é a mesma coisa...) tivessem poder, o mundo
seria outro. Elegia-se, como mestre de cerimônias da dita festa, um bispo
de faz-de-contas, que em alguns lugares recebia o título de Bispo das Crianças
(episcopus puero rum), e em outros, o nome de Papa dos Tolos
(papa fatuorum). Não eram bispos nem eram papas de
verdade - só de brincadeira. Vestiam-se com as cores dos bispos e com as
pompas de um papa e o mundo virava de cabeça para baixo.
“Coisa maluca”, dirão. Claro. E todo mundo sabia disto, tanto que deram
o nome de Festa dos Tolos a esta celebração. Lembrei-me então
que é justamente isto que os textos sagrados dizem de Deus, que ele é um
grande, o maior dos tolos. Pois o que chamamos de sabedoria, ele chama de
tolice. E o que chamamos de tolice, ele chama de sabedoria (1 Cor.
1.25-29). Haverá tolice maior que dizer que é preciso que os adultos se
transformem em crianças? Deus faz o mundo andar ao contrário.
Deus é o contrário. Quem anda para a frente vai para trás, e quem anda
para trás vai para a frente. No lugar dos bancos, dos quartéis e dos
shopping centers, os circos...
O Papai Noel, ou Papa dos Tolos, ou Bispo das Crianças, era o palhaço
que tomava as crianças pela mão e anunciava o advento de um novo mundo,
criado pelo sonho. Pela sua magia as utopias invadiam as ruas. Como no
carnaval...
Comecei a gostar dele, do Papai Noel: bufão bobo-da-corte. Sempre gostei
dos palhaços. Kolakowski, filósofo polonês, tem opinião parecida, e
sustenta a tese de que o filósofo deve ser o bobo-da-corte. Nietzsche, em
suas meditações autobiográficas, diz a mesma coisa: era apenas um bufão. E
foi ao ponto de escrever um poema em que confessa ser nada mais que
um tolo, nada mais que um poeta... Pois não é isto que os poetas fazem,
virar o mundo de cabeça para baixo?
Os adultos não compreendem. Por se levarem a sério demais, estão
condenados a morrer de sua própria tolice. São como aquele rei, da estória
infantil de Andersen, que gostava de roupas bonitas, e saiu nu às ruas
pensando que estava vestido. E o pior é que todo mundo acreditava... Foi preciso
que um menino gritasse: “O rei está pelado!” Com o grito do menino
o feitiço se quebrou e o mundo explodiu numa maravilhosa gargalhada.
Percebi então que não é só o Menino Deus que desapareceu. O Papai
Noel bufão desapareceu também. Porque se ele fosse o Bispo das Crianças,
estaria fazendo caçoada dos adultos, e as pessoas grandes fugiriam dele,
com medo que ele se risse das suas vergonhas expostas. Acho que ele foi
seqüestrado. Deve estar preso em algum subterrâneo, juntamente com o Menino
Deus, os bichos, os anjos, Maria e José.
Quero o Papai Noel de volta! Vocês, donos de shopping centers: onde o esconderam? Vocês, adultos, que mandam neste mundo de mentiras onde a felicidade se compra a crédito: o que fizeram com ele? Suspeito que vocês fizeram sociedade com Herodes... Por favor: tragam de volta o Papai Noel bufão! Deixem a criança divina nascer!
* Escritor, teólogo e educador, membro da Academia Campinense de
Letras
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