Ministro da Justiça pede
mais prazo para resolver questões indígenas no sul
* Por Elaine Tavares
A visita do ministro da Justiça José Eduardo Cardozo ao estado de Santa
Catarina para discutir a questão da demarcação das terras indígenas, suspensas
em todo o sul do país, faz parte de uma articulação da ministra Ideli Salvati,
para resolver de uma vez por todas a questão da BR 101, no ponto do Morros dos
Cavalos, onde está uma comunidade Guarani (1.988 hectares). O governo chegou a
anunciar, no mês de novembro, a liberação dos recursos para a quarta pista no
trecho que atravessa a terra originária, “até que se construa o túnel”,
conforme afirmou Ideli Salvatti. O túnel a qual se refere é uma obra já
planejada pelo Departamento Nacional de Infraestrutura de Transporte (Denit),
que teria um túnel duplo de 1,800 quilômetro cada um, mais dois viadutos de acesso,
com custo estimado de 650 milhões. Os Guarani não concordam com essa obra, por
atravessar suas terras e causar muito impacto ambiental.
E é esse processo de negociação que está na manga do ministro, apesar de
ele ter chamado as três nacionalidades que vivem no estado para conversar.
Assim, vieram os Guarani, os Xokleng e os Kaigang. Todas essas comunidades
estão há mais de 20 anos aguardando pela demarcação e desintrusão de suas
terras e desde aí também vivem no permanente conflito com as famílias não-índias
que ocupam o território. Muitas dessas famílias compraram as terras de boa fé,
mas é possível também observar a ação de especuladores de terra que acabam
incitando as famílias contra os indígenas, inclusive atrasando as negociações.
Por isso foi um tanto patético ouvir o ministro da Justiça dizendo que
precisava de um prazo de 15 dias para conhecer o caso específico de cada
comunidade. “Vim aqui para dialogar, mas os casos são diferentes. Preciso
conhecer o diagnóstico de cada área”. Os indígenas estavam incomodados com essa
conversa mole. “Nossa terra está virando caso de política, porque a gente vê
muito político se metendo, e inclusive querendo explorar as nossas terras”,
disse uma liderança Xoclengue, da região de Ibirama. Outro disse que já são
mais de 20 anos na luta pela demarcação, que não é possível que o ministro não
conheça tudo isso. “Nós somos parte da União, somos parte do meio ambiente. O
governo tem obrigação de cuidar de tudo isso, de nós. Mas, não, dizem que nas
terras do sul não tem índio. Eu quero ouvir do senhor que vai trabalhar pela
demarcação. O senhor é estudado, é doutor. Eu não tenho nem o segundo ano, mas
eu sei de cor os artigos da Constituição que garantem a nossa terra. Então,
ministro, qual é a proposta, afinal”?
E José Eduardo Cardoso respondeu: “A proposta é ouvir cada um”. Ou seja.
Não havia proposta. O ministro tentava convencer os indígenas de que poderia
sair uma proposta conjunta entre governo, famílias de agricultores e índios,
ali, naquela reunião. E recusou-se a aceitar qualquer condição por parte das
comunidades. Mas, os indígenas lembraram ao ministro que as famílias de
agricultores já estão impondo condições na medida em que não permitem a entrada
da Funai para efeitos de estudo de demarcação. “A gente sabe que alguém tem de
ceder, mas tem de ser de ambos os lados. Por que só nós temos de ceder?” As
lideranças indígenas são muito claras com relação ao problema das famílias.
Elas aceitam que boa parte comprou terra de boa fé e, portanto, precisa ser
indenizada. Mas isso é uma questão para o governo. Se as terras indígenas foram
vendidas algum dia para famílias de colonos, isso foi uma ação ilegal. Agora, é
o governo que tem de dar a solução. Não pode ficar jogando a responsabilidade
para os indígenas. No caso dos Guarani do Morro dos Cavalos até os acidentes
que acontecem na BR 101 já estão sendo imputados à eles. Isso beira o absurdo.
Os indígenas reivindicam suas terras e também reivindicam que as famílias que
ali vivem sejam indenizadas pelas benfeitorias e pelas terras. E também
apresentam propostas para o problema da 101. Mas, quem ouve?
Durante a reunião outro indígena recordou ao ministro que ele já havia
pedido um prazo de 15 dias numa reunião da qual participaram em Brasília, há
meses. “O senhor teve o prazo e não fez nada. Agora quer mais 15 dias?” O
ministro respondeu que teve de cuidar de um conflito que estourou na Bahia e
não teve tempo de definir as demandas do sul. “Mas nós aqui também temos
conflito. Qual é a diferença?”, argumentaram os indígenas. Outra
liderança se dirigiu ao vice-governador Pinho Moreira, que também estava na
reunião: “Nós somos filhos desse estado, governador, e vocês esqueceram de nós.
Estão fomentando a guerra entre os seus filhos, nós e os colonos. Todos os estudos
já foram feitos, tudo já está definido há vinte anos. Que mais há para
esperar?”
O representante Kaigang, Rildo Mendes, foi enfático. “O senhor pediu um
prazo de 15 dias? Nós vamos lhe dar mais, vamos dar até abril. Se nada for
definido sobre o Toldo Imbu (uma terra kaigang no oeste do estado) nós vamos
tomar essa terra, mesmo que sangue seja derramado.
Reunião conjunta, promessas de solução
Eram duas e meia da tarde quando a primeira parte da reunião foi
encerrada. Por volta das quatro horas, o ministro retornou para nova rodada de
conversa. No estado de Santa Catarina, além da polêmica sobre o Morro dos
Cavalos, sobre o qual passa a BR 101, também há uma outra urgência que diz
respeito da comunidade Araçaí, igualmente enfrentando conflitos com famílias
não-índias. São 2.700 hectares entre os municípios de saudade e Cunha Porã, no
oeste do estado, que já foram definidos como terras tradicionais dos Guarani. O
governo, pressionado pelos agricultores que estão na área, comprou 800 hectares
de terra em outra localidade, na região oeste, para onde quer transferir os
Guarani, mas eles não querem ocupar um território que não é deles, e ainda por
cima, bem menor do que têm direito. Até porque essa terra, segundo eles, está
dentro do território Kaigang. Os Guarani querem ficar na sua terra de origem.
Além disso, a proposta do governo pode abrir um precedente muito perigoso que é
justamente o artifício do deslocamento para longe do território original. Para
as comunidades Guarani, assim como para qualquer outra nacionalidade, não é
compreensível a ideia de "comprar" um espaço para morar. O território
originalmente ocupado pelos seus ancestrais está repleto de marcas históricas e
culturais. Não faz sentido ser assentado em uma terra estranha. Assim, a proposta
que está na mesa é a de que o governo venda a área comprada e use os recursos
para pagar as indenizações das famílias não-índias. Ninguém entende porque o governo já não fez isso. Quanto mais demora, mais
insufla o conflito.
Depois de muita conversa o ministro conseguiu o seguinte acordo sobre a
terra Guarani de Araçaí: as famílias ocuparão a terra comprada,
provisoriamente, e serão liberados 8 milhões de reais para pagamento de
indenização das famílias não-índias que estão em território Guarani. Fechada a
indenização e feita a desintrusão, eles voltam ao território original.
No que diz respeito a nacionalidade Kaikang, uma reunião específica foi
acertada para o dia 23 de dezembro, quando o ministro volta à Florianópolis.
Eles insistem que a demarcação de suas terras e a desintrusão das famílias de
agricultores tem de ser feita até abril de 2014, senão eles mesmos vão
demarcar, custe o que custar. Segundo uma das lideranças kaikang, as questões
com os agricultores já estão definidas, resta ao governo fazer a sua parte.
A conversa com os Guarani do Morro dos Cavalos, foi a mais tensa. Até
porque foi realizada conjuntamente com uma pessoa que os indígenas acusam de
ser "grileiro" (Alberto Bensousan) e uma dona de cartório que afirma
ter legalizado todas as terras das famílias que estão no território
reivindicado pelos Guarani. Durante a reunião, Alberto insistiu em afirmar que
os indígenas que ali vivem não são brasileiros. "Eles são do
Paraguai". Também acusou os antropólogos que realizaram os estudos de
demarcação de serem parciais, beneficiando os indígenas. Nessa hora começou um
bate-boca que só terminou com a intervenção da procuradora do Ministério
Público, Ana Lúcia Hartmann, que informou sobre as suspeitas que pairam sobre o
processo de legalização levado a cabo pelo cartório em questão. O ministro
também foi bastante duro com os que diziam representar as famílias de
agricultores, argumentou que queria fazer um acordo, mas que se eles não tinham
interesse, que procurassem os seus direitos na justiça. Na fala da cacique
Eunice Paraí, ela reafirmou que os estudos já estão feitos, que o processo todo
é muito claro e que só falta o governo agir.
O ministro reforçou seu pedido de um prazo de 15 dias, no qual Funai e
Ministério Público farão o levantamento da situação das 77 famílias
agricultores que vivem na área. Para isso, conseguiu dos representantes da
família o acordo de que as mesmas permitirão a visita da Funai. "Vamos
esperar que as famílias permitam a visita. Será mais uma tentativa", disse
o ministro. Os Guarani também concordaram. Assim, a questão da demarcação e
desintrusão das terras indígenas em Santa Catarina fica em suspensa por mais 15
dias. Dia 23 de dezembro, o ministro volta. Espera-se que com algum
proposta concreta.
Durante toda a conversa estava clara a tentativa do ministro em parecer
simpático e decidido a resolver o problema, reconhecendo o direito dos
indígenas. Mas, como tem se visto em todo o Brasil, com o estouro de violentos
conflitos e até atos ilegais, como o caso dos fazendeiros que fizeram um leilão
para arrecadar recursos visando a formação de milícias armadas, o governo tem
sido de uma frouxidão abissal, permitindo assim que a violência cresça
vertiginosamente. Indígenas são assassinados, milícias são formadas, jagunços agem
a céu aberto. Há muita demora na solução dos problemas e cada dia a mais pode
significar mais e mais mortes, dores e destruição.
No caso de Santa Catarina as comunidades decidiram dar mais um voto de
confiança. Resta esperar. Mas, ecoa forte a fala do representante
kaigang: "até abril, senão nós mesmos vamos demarcar, custe o que
custar".
Jornalista
de Florianópolis/SC
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