Dicionário amoroso do Recife
* Por
Urariano Mota
Leitores pacientes com
o colunista, divulgo a seguir um trecho do Dicionário Amoroso do Recife.
Este livro é fruto de
toda minha vida na cidade, um lugar possuidor de visco e modo de ser que
acompanhou e acompanha o autor sempre. Pelo menos duas vezes tentei viver em
outras terras, mas em vez de me adaptar a elas, procurei nas outras alguma
característica que fosse do Recife. É um fenômeno conhecido em todas as paixões
que se rompem antes que se resolvam. Quem perde, procura em outras pessoas
características semelhantes àquela pessoa anterior: um rosto, um nome, um riso,
um igual defeito, um perfume que lembre o bem perdido. Como bem musicou Capiba
nos versos de Carlos Pena Filho:
“Você tem,
Quase tudo dela,
O mesmo perfume,
A mesma cor,
A mesma rosa amarela,
Só não tem o meu amor.
Quase tudo dela,
O mesmo perfume,
A mesma cor,
A mesma rosa amarela,
Só não tem o meu amor.
Mas nesses dias de carnaval,
Para mim você vai ser ela,
O mesmo perfume, a mesma cor,
A mesma rosa amarela.
Mas não sei o que será,
Quando chegar a lembrança dela,
E de você apenas restar,
A mesma rosa amarela”
Para mim você vai ser ela,
O mesmo perfume, a mesma cor,
A mesma rosa amarela.
Mas não sei o que será,
Quando chegar a lembrança dela,
E de você apenas restar,
A mesma rosa amarela”
Assim uma vez em São
Paulo, no apartamento de Gildo Marçal, na sala de onde se via a garoa noturna
de São Paulo, uma jovem me arrancou da tristeza ao declamar Ascenso Ferreira:
"Babá-do-Arroz-Doce, Sá-Biu-dos-Cuscuz,
`o home dos caranguejo e dos siri!`
Folha verde - Deliciosa meninice das gentes de minha terra,
que eu tanto amei e senti..."
`o home dos caranguejo e dos siri!`
Folha verde - Deliciosa meninice das gentes de minha terra,
que eu tanto amei e senti..."
Eu pedia para que ela
repetisse, como se fosse música de radiola de ficha: “babá-do-arroz-doce,
sá-biu-dos cuscuz”, porque essa voz dialetal vinha da infância no Recife. E por
isso a jovem em São Paulo me deixava sorrindo feito menino.
Mesmo em viagens para
ficar apenas dois dias em outra cidade, eu sempre quis ir a restaurantes que
servissem comida nordestina. Não era peitica, como falamos os recifenses, era
um cordão ligado ao útero do Recife. Havia sempre em todas as ruas de outros
lugares uma falta, ora do cheiro de mar, ora do Capibaribe, ora do suco de
graviola, de cajá, de feijão com charque e jerimum, das coisas mais caras que
fazem uma identidade. Se estou em João Pessoa, cidade bonita e acolhedora, na
praia de Tambaú descubro com exclamações o restaurante Gambrinus, mesmo nome do
bar que existia na Marquês de Olinda, em nossa juventude. O Recife traz para
mim a situação daquela música de Herivelto Martins, Pensando em ti: “eu
amanheço, eu anoiteço, pensando em ti”, cidade. Nos livros que tento ler em
cada frase o Recife está. Santa cidade, não deixa nem espaço para eu pensar em
Deus. Aliás, se existe, Ele é o Recife...
O leitor já vê que o
campo dos significados deste dicionário não foi consideravelmente apurado
quanto à exatidão e clareza. Como pode o coração ser exato? Os significados
neste livro vêm na nuvem da memória e do sentimento. Ou numa tentativa de ser
mais preciso: a memória fala daquilo que a marcou. É sentimemória ou memória
sentimentada. A clareza será percebida pela empatia que a expressão escrita
despertar. Falo para humanos a humanidade do Recife. A clareza, se felicidade
eu tiver, virá daí. A exatidão, se ocorrer, virá da verdade que o dicionarista
ousou imprimir nos verbetes, ou nas definições da alma da cidade que fala à
semelhança de verbetes.
Os autores de
dicionários falam sempre que, em relação à primeira edição, centenas de
milhares de alterações foram introduzidas em todos os elementos componentes
(com o perdão da rima, mas dicionarista raro sabe escrever) da edição anterior.
Mas neste caso, em que a primeira edição se faz agora, as alterações se
registram nas mudanças da cidade. Como no deslocamento do que antes era “o
centro do Recife”, ou no sentido das translações do carnaval do Recife, que
cresceu pela incorporação do carnaval de Olinda. Ou então no sonho do que foi e
teria sido o Teatro Marrocos, lugar de perdição pelo que dele imaginavam os
jovens que não tinham 18 anos ou dinheiro para vê-lo. Os olhos que recuperam o
passado não se deleitam nele, porque seguem para a transformação da cidade além
do espaço físico, porque atingem os gostos e costumes do Recife.
É claro, como bem
acertam os grandes lexicógrafos, “não há como ser definitivo e muito menos
exaustivo no mister da lexicografia”. Alertando para o mister aí, que não é o
paroxítono Mister senhor, mas oxítono como clister, e com o sentido de senhor
ofício ou trabalho, anotamos que o dicionário de uma cidade jamais será
definitivo ou exaustivo. Será de exaustão apenas para quem o faz. Isso porque a
cidade é mais resistente a uma conformação de A até Z, que o léxico autoriza.
Na cidade, mais rápido que na língua, tudo é mudança. Por isso, “no que
tange à datação do primeiro registro das palavras em português, pudemos
antedatar, por vezes de séculos...”, não, este dicionarista aqui não é de séculos,
apesar de, pelas barbas brancas, haver quem o chame de Papai Noel.
Por isso, depois do
Natal, aguardem o Dicionário Amoroso do Recife.
*
Escritor, jornalista, colaborador do Observatório da Imprensa, membro da
redação de La Insignia, na Espanha. Publicou o romance “Os Corações Futuristas”,
cuja paisagem é a ditadura Médici e “Soledad no Recife”. Tem inédito “O Caso Dom Vital”, uma sátira ao
ensino em colégios brasileiros.
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