Os riscos da
impulsividade
“A vida espiritual dos homens, os
seus impulsos profundos, o seu estímulo à ação são as coisas mais difíceis de
prever. Mas é justamente delas que dependem a morte ou a salvação da humanidade”.
Esta afirmação, óbvio, não é minha. É de um dos mais brilhantes e também
polêmicos cientistas do século XX, que se converteu, no fim da vida, em
implacável defensor dos direitos humanos. Refiro-me ao russo Andrei Sakharov,
falecido, em Moscou, em 14 de dezembro de 1989.
É
assustadora esta declaração, ainda mais vinda de quem veio. Se houve um homem
habilitado a falar dos riscos até de extinção da espécie humana, este foi, sem
a menor dúvida, o citado físico nuclear. Frise-se que ele contribuiu
decisivamente para que a humanidade tivesse (ou tenha, é mais correto afirmar)
esse risco constante e iminente (embora a maioria sequer se dê conta),
porquanto é tido e havido como o “pai” da bomba de hidrogênio soviética (“herdada”
pela Rússia), da qual o artefato que arrasou em segundos a cidade japonesa de
Hiroshima, em 6 de agosto de 1945, não passa de mero estopim.
Mas não são somente a morte ou a
salvação da humanidade que dependem de impulsos que, como Sakharov concluiu,
são “difíceis de prever” (eu diria que são imprevisíveis). Praticamente todos
nossos atos, dos mais triviais aos mais complexos e transcendentais, são, em
certa medida, impulsivos. Mesmo os previamente planejados, portanto,
supostamente movidos pela “razão”. Jamais podemos perder de vista o fato de que
somos essencialmente animais. Temos os mesmos instintos básicos de quaisquer
das feras broncas da natureza. Nosso único diferencial é a consciência, a
capacidade de entendimento, que volta e meia tem sérios lapsos ante a
prevalência das características instintivas, selvagens e primárias da natureza
humana. Vez por outra (para não dizer, constantemente) nos esquecemos da nossa
animalidade e da imprevisibilidade dos nossos instintos que nos leva a agir por
impulsos quase nunca racionais.
Não foi apenas Andrei Sakharov que
chegou à conclusão que citei acima. O escritor Anatole France disse,
basicamente, a mesma coisa, ao expressar, pela boca de um de seus personagens: "As
razões de nossos atos são obscuras e os impulsos que nos impelem para a ação
ficam profundamente ocultos". Há uns três anos, escrevi uma crônica
tratando, basicamente, da mesma questão. Claro que meu texto não tem (e nem
poderia ter, por razões óbvias) a mesma profundidade das observações de Andrei
Sakharov (conhecedor dos perigos que ele mesmo contribuiu para tornar extremos)
ou mesmo de Anatole France, arguto observador do comportamento humano.
Escrevi, em certo trecho da
referida crônica: “Pelo fato da vida ser, relativamente, tão curta e não
comportar reprises, para emendarmos nossos erros, somos forçados a agir, na
maior parte das vezes, por impulsos”. Fui mais longe e comparei nossa atuação
no cotidiano com a dos artistas dos palcos e das telas, especializados na arte
da simulação da vida. “Somos como atores convocados a representar uma tragédia
(ou comédia), sem ter feito um único ensaio, apenas com uma ligeira e apressada
leitura do script”. E não somos? Pensem nisso.
Na sequência do texto, concluí: “Nunca
saberemos, de fato, se a intuição que nos determinou seguir certo sentimento
foi correta ou não. Não há tempo para essa verificação”. Cada situação que se
nos apresenta é diferente de outra pela qual já passamos, que pode ser até
semelhante, muito parecida, mas jamais será igual. Novos problemas requerem
soluções também novas, apropriadas para cada caso. Não temos como elaborá-las
previamente. “Estamos representando sem ensaio”. Somos compelidos a agir e
agimos, mas por impulsos. Essas ações, portanto, podem tanto ser as adequadas e
suficientes como podem ser equivocadas. Podem, por conseqüência, ser
construtivas ou desastrosas e arrasadoras.
Os defensores das armas nucleares
(e há uma infinidade de insensatos que as defendem), garantem que elas existem
não para serem utilizadas, mas somente como fatores dissuasórios de guerras.
Ora, ora, ora. Esses insensatos se esquecem que elas já foram utilizadas contra
populações civis absolutamente indefesas. E mais de uma vez. Além do que, vários
documentos do período da chamada “guerra fria” comprovam que o mundo esteve, e
em no mínimo dez ocasiões diferentes (ao que se saiba), à beira do “holocausto
nuclear”, que só não ocorreu pela providencial intervenção do acaso.
Como conceber que um poderio
destrutivo tão monstruoso e aterrador esteja em mãos de seres movidos por
impulsos tão complexos, misteriosos e assustadores a ponto de serem
imprevisíveis? Fosse o homem realmente racional, como arrogantemente apregoa,
destruiria já, com a máxima urgência, sem titubear, todo esse terrível arsenal
destrutivo. E mais, apagaria das mentes dos que dominam o conhecimento da sua
produção, por um meio qualquer caso exista, a tecnologia que permite sua
construção. Não é, óbvio, o que ocorre. Mesmo em se sabendo que a morte ou a
salvação da humanidade dependem de coisas tão difíceis de prever ou
imprevisíveis, como “a vida espiritual dos homens, os seus impulsos profundos e
o seu estímulo à ação”.
Por isso, precisamos cuidar das
nossas emoções com o máximo carinho (raríssimos cuidam). Milan Kundera advertiu,
no romance “A insustentável leveza do ser”: “O homem, porque não tem senão uma
vida, não tem nenhuma possibilidade de verificar a hipótese através de
experimentos, de maneira que não saberá nunca se errou ou acertou ao obedecer a
um sentimento. Tudo é vivido pela primeira vez e sem preparação. Como se um
ator entrasse em cena sem nunca ter ensaiado”. Daí ser questão de prudência não
permitir a ninguém, a país algum, não importa seu grau de desenvolvimento, a
posse de instrumentos tão terríveis como as armas nucleares ou outras tantas,
com elevado potencial de destruição. Nenhuma pessoa de bom senso dará, por
exemplo, uma faca afiada para uma criança brincar, não é mesmo? Pois serve a
comparação.
Boa leitura.
O Editor
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