Trem & Trens 2
*Por José Calvino
ATO II
CENA I
CENÁRIO – O mesmo do
primeiro ato.
ANOS 60:
Ao abrir-se a cortina,
pela metade, devagar, é noite e se vê a Estação fechada. Flávio, envelhecido,
de barba, deitado num banco da plataforma, sendo acordado por um meganha com
uma lanterna iluminando o seu rosto. Chuta-o, com o bico do coturno.
MEGANHA (Arbitrário) –
Não tem casa não, matuto?
FLÁVIO (Transtornado,
passa as mãos na barba, limpa os olhos com as costas da mão, com o rosto
encandeado pela ilumiação da lanterna que o meganha lhe dirige)- Ahn?!
MEGANHA (Irritado) –
Vamos, seu porra velho... (Chuta-o outra vez e pega Flávio pelo colarinho,
erguendo-o e lhe alumiando novamente o
rosto).
FLÁVIO – Ahn? (Abre a
boca sem sono) Ah...Ah... diga, seu guarda.
MEGANHA (Fulo da vida,
joga-o do banco abaixo) – Guarda uma porra...
FLÁVIO (Admirado,
tranquilamente levanta-se) – Perdão, não sei o que dizer...(Pejorativo)...
desculpe, seu polícia!
MEGANHA – Têje preso
(Empurra Flávio, que cai na Plataforma, dando-lhes outros chutes e Flávio sai
rebolando pelo chão. O guarda o pega pelos cós da calça, no cinturão). Vamos,
“fila da puta”!
FLÁVIO (Espantado,
noutro tom) – Eu sou ferroviário... me solte, pelo amor de Deus, pelo amor que
o senhor tem à sua mãe.
MEGANHA (Tira as mãos
do cinturão de Flávio, surpreso) – Como?
FLÁVIO (Tranquilamente,
limpa a roupa e passa a mão na barba) – Sou telegrafista e quando amanhecer o
dia estarei indo a uma reunião, lá no Sindicato...
MEGANHA (Baixo, a
Flávio) – Olha, meu velho, vou soltá-lo, veja bem... (Temendo perder o bico)
... sou casado e novato na Companhia e não quero perder esta “boca” (Cria
coragem). Se eu perder, ajustará contas comigo, está ouvindo, velho?
FLÁVIO (Benévolo) – O senhor não se preocupe. Eu sei
o que é isso e que a culpa não é do senhor...(Parodiando João Cabral de Melo
Neto) “Hoje, o grande doente é o Brasil, com mais fome, mais violência e mais
doenças”. Até, amigo!
Saem pela plataforma
abaixo. A cortina abre-se totalmente. O meganha gesticulando para Flávio
pausadamente, pára e depois ambos seguem seus destinos, desaparecendo. Enquanto
isto, na Rotunda, telegrafistas ferroviários vão se reunindo, conversam juntos
com estudantes jovens em geral).
2º TELEGRAFISTA – Os
ferroviários irão entrar em greve no dia 21 à zero hora.
3º TELEGRAFISTA – Vamos
lutar. A gente só é telegrafista na licença do trem, mas no ordenado somos G-5,
“golinha”, “rola-voou”, et cetera.
4º TELEGRAFISTA – Nós
não somos considerados do quadro. Estão chamando a gente até de “amostra
grátis”! É um verdadeiro trem de apelidos...
5º TELEGRAFISTA – A
minha carteira do Ministério do Trabalho se encontra na Inspetoria há dois
anos!!!
6º TELEGRAFISTA – A
reunião tem é pouca gente, né?
7º TELEGRAFISTA – É
medo de perder o emprego, e quem mora na casa da Companhia, aí já viu, aceita e
concorda com tudo. Eles enganam direitinho.
2º TELEGRAFISTA – Será
que vai dar “QRM”, na greve?
2º SINDICALISTA – Vamos
reivindicar tudo isto: bom salário, etc...
3º SINDICALISTA – A
reunião no Sindicato é contra o pessoal do “Trem do Chaleiras”, que querem
furar a greve como na outra vez. A gente se encontra lá (Sai).
Flávio (À platéia, em
voz alta) – Vamos ver se o Sindicato desta vez funciona. Vocês devem se unir e
votar no nosso candidato...
Aplausos
Platéia
JOVEM CABELUDO (Entra
com a bandeira do Brasil, revoltado) – Era bom uma greve geral moralizada, para
dar uma lição no “Trem dos Corruptos”.
Vozearia
VOZES – Viva, viva!!!
PLATÉIA (Exalta-se
novamente).
Obs: Quanto à
provocação e participação da platéia, o critério deverá ser da direção , se
julgar conveniente.
Ouve-se o silvo
tradicional da “Maria Fumaça”
“O trem”
TREM DE CARGA – Café
com não? Bolacha não
Café com
não, café com não.
Bolacha
não...
Trem de carga ao parar.
Fumaceira
FECHA A
CORTINA
Cena II
CENÁRIO - O mesmo das cenas anteriores.
Ao abrir-se a cortina,
Flávio aparece bem vestido e barbeado, com líderes sindicais sentados em uma
mesa redonda, na sala do Sindicato. Alguns entram (A quantidade fica a critério
da direção).
Pausa
FLÁVIO (Presidindo a
mesa, no comando da greve) – Na primeira greve negociamos os 40%. Agora, vamos
colocar piquetes em todas as oficinas, principalmente na de “Moscouzinho” (JÁ -
Jaboatão) e Werneck ( EW- Edgar Werneck). Vamos reorganizar as nossas bases,
companheiros.
LÍDER 2º (Levantando) –
A nossa sorte depende do apoio da Igreja, que não tivemos na primeira...
(Senta).
LÍDER 3º (Levantando) –
É isto aí, na outra vez de igreja brasileira só teve o padre do 14RI, que
apoiou a nossa greve (Vide “Moscouzinho), colocando a bandeira do Brasil na
linha do trem...(Senta).
Pausa
LÍDERES – “Vamos
distribuir panfletos...”
“ No jornal deve sair esta
matéria...”
LÍDER 4º (Levanta) –
Agora nós entendemos de lei trabalhista. Não será como naquele tempo, que as
carteiras profissionais eram assinadas quando eles bem queriam (Senta).
LÍDER 5º (Levanta) –
Temo que enfrentá a poliça com pau e pedra (Senta).
LÍDER 6º (Levanta) –
Até mesmo com o sacrifício da própria vida (Senta).
LÍDER 7º (Levanta) – Eu
não tinha direito a Instituto e a minha esposa deu à luz na indigência. Eles me
pagam...(Senta).
FLÁVIO (Corta. Levanta
acompanhado pelos demais) – Então companheiros, estamos combinados. Faremos
tudo para o bem de nossa nação (Levanta o braço direito com o punho cerrado).
Atenção: meia noite em ponto!
Retiram-se, conversando
um por um, com vozes inaudíveis.
Pausa.
Silêncio.
FECHA A CORTINA
CENA III
CENÁRIO – O mesmo das
cenas anteriores.
Ao abrir-se a cortina
já é dia vinte e um de agosto. Militares (Uniforme: brim verde-oliva,
capacetes, mosquetões...) e PMs (Fardamento : brim cáqui ruço, armados
cassetetes tamanho família). Encontram-se na Rotunda, junto a patrões e
empregados (Os empregados, em maioria, de macacão e alguns com bonés).
Vozearia dos grevistas.
CAPITÃO (Uniforme idem,
capacete com três estrelas, idem sobre as platinas. Voz alta) – Silêncio! (Com
a mão no revólver) Tenham calma... (Noutro tom) quero falar com o comandante de
vocês.
FLÁVIO (Com ar
espantado, se apresenta) – Pronto!
DOUTOR CORK (De chapéu,
prepara o charuto, tira o selo do meio, lambendo-o bem e morde a ponta, pondo-o
na boca, entre os dentes. Acendendo-o, benigno, para os grevistas) – Vamos
negociar, minha gente (Coloca a mão em cima de Flávio e do Capitão).
Vaias
2º GREVISTA (Em voz
alta, irritado) – Agora eles querem negociar. Antes, não quiseram nem ouvir a
gente!
3º GREVISTA (Sujo de
graxa, com uma bicicleta) – Nós aceitamos somente 35%...
Vozearia. Gritos e
tumulto. É formado um cordão de isolamento, por militares.
4º GREVISTA (Agride um
dos policiais militares) – Confia ma farda é, seu porra?
VOZES – “Quede a tua combléia?”
“Deixei em casa, pra que?,
dois tiros e uma carreira.”
“Eu prefiro a minha faca.”
“Opa!”
“Cabeça de glória, cu de
purgatório.”
Risos abafados.
DOUTOR CORCK (Alarmado, com voz abafada ao capitão)
– Vou telefonar para o general...
O chefe do tráfego
(CHT) sai correndo, com a mão no chapéu-do-chile, com o seu “Havana” pelo meio,
apagado, e desaparece.
Vozearia dos grevistas.
5º GREVISTA (Com dois braços erguidos, em voz alta) – A
Companhia é nossa.
2º GREVISTA (Gesto
obsceno para os militares) – Fora os militares! (Em voz alta) Milicos
assassinos!!!
3º GREVISTA (Agride o
2º GREVISTA com um soco, desmaiando-o) – Toma, pra saber respeitar...
6º GREVISTA
(Enfurecido, quebra a bicicleta do 3º GREVISTA e joga-a em cima dos militares)
– Agora, me matem.
Os militares apontam as
armas, com as baionetas caladas para os grevistas. Em seguida, o Capitão ordena
que atirem para o ar.
2º MILITAR (Uniforme
idem, capacete com 3 divisas, idem nas mangas. Com horror, em voz alta) – Eles
estão com “coquetéis molotov!”
5º GREVISTA – Eles
estão atirando com cartuchos de festim!
CAPITÃO (Agitado,
retira do cinto uma bomba de gás lacrimogêneo e joga em cima dos
ferroviários-grevistas, produzindo fumaça) – Comunistas de um figa, agitadores,
tomem o que merecem (Em voz alta) Vocês não são brabos?
Vozearia
Ouve-se o apito da
“Maria Fumaça”. Música “O trem”. Os grevistas ficam atônitos ao ver o trem
parar.
Fumaceira
2º GREVISTA – Furaram a
greve! Olha um trem cheio de soldados...
VOZES – “Prenderam
Flávio com a mauser”.
“A Polícia está revistando
quem atravessa a linha.”
“Não adianta.”
“Não façam isso, eu tenho
mulher e filhos.”
“Não tenho culpa.”
“Por que não ficou em casa?”
“Para, para.”
“Tomaram a peixeira de Zé
Pedro”
“Eu confio é no meu
simituesse (Smith & Wesson).”
Neste momento, a
Rotunda é subitamente invadida por tanques de guerra, carros de choque da
Polícia do Exército (PE). Vê-se parado um trem de tropa do Exército, som de
corneta, soldados desembarcam com armas na mão pela plataforma da Estação, sob
o comando de um Oficial Superior de gabardine verde-oliva, com megafone da
mesma cor, idem para os grevistas. O capitão presta sua continência
regulamentar ao receber as ordens de seu superior hierárquico. Incontinenti,
retira uma pistola do cinto e aponta para os grevistas. Ao acioná-la, sai uma substância
química de efeito moral, provocando disenteria. Os soldados, em posição de
“cunha”, com as baionetas caladas, atiram fulminantemente em direção aos
grevistas. Ouvem-se tiros. Homens, mulheres e crianças saem correndo para todos
os lados, sem destino, seguidos por militares atirando a esmo.
Fumaceira.
Toque de corneta.
Silêncio. Ouve-se o
hino da Independência.
POVO DO ARRAIAL
“Já podeis da pátria
filhos/Ver contente a mãe gentil. Já raiou a liberdade/No horizonte do
Brasil/Brava gente brasileira/Longe vá temor servil/Ou ficar a pátria livre,/
Ou morrer pelo Brasil...”
O Hino à Independência
do Brasil (letra de Evaristo da Veiga e a música, do então Imperador D. Pedro
I) continua durante toda a cena de violência. Fecha-se lentamente a cortina.
Vê-se alguns grevistas mortos, outros moribundos estendidos, na
casinha-de-fossa, em torcicolo, feridos, espancados, machucados... Alguns sendo
fuzilados na jaqueira, grevistas cambaleando pelo matagal...
A cena, quase às
escuras pela fumaça. Abre-se lentamente a cortina, e aparecem alguns líderes,
escoltados por soldados, todos cagados e com os olhos lacrimejando,
comicamente tristes olhando para a
platéia (Fica a critério da direção a relação ator/espectador). Um dos soldados
cai, com ataque epilético (Sugestão: comprimido efervescente na boca provoca
espuma junto à saliva).
“O trem”
TREM – Café com
não/Bolacha não
Café com não/Com não, com não,
Com não...
Fumaceira
FECHA A CORTINA
FIM DO SEGUNDO ATO
Nota – Extraído do
teatro “Trem & Trens”, pp. 39-46 – ed. 1990.
*Escritor,
poeta e teatrólogo.
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